Terceiro Capítulo

 
 
 
O Guarda

A divisa estava completamente tomada. Depois dos ônibus, o Gigante de Ferro, como era conhecido o trem, chegava com seus passageiros enlouquecidos para começar as compras. Depois de negociar com os cambistas e ter o cruzeiro na mão, todos desembarcavam, deixando para trás a pomposa locomotiva. Que permanecia parada, imponente, apenas com o condutor, fiel companheiro da enorme máquina, que aguardava sobre os robustos trilhos calçados pelos dormentes fixados ao solo de uma construção centenária. Digna da magnitude de seu proprietário de fato – Barão de Mauá – capaz de encantar a todos que necessitavam passar por ali para chegar à escadaria que os levaria à pequena praça, onde havia todos os tipos de comércio.

Os compradores encontravam com facilidade e abundância roupas, ferragem, utensílios e quinquilharias, num verdadeiro mercado persa. Ali estavam também instalados os atacados maiores, que surgiam como moscas. Novos e gigantescos abriam suas portas sempre trazendo novidades, dedicando-se exclusivamente a comercializar alimentos como feijão, farinha, açúcar, massa, caramelos, chocolates...

As lojas, sob controle dos palestinos e Libaneses – “turcos”, como eram chamados, culturalmente imbatíveis na arte de negociar – ficavam lotadas, a fervilhar, num movimento inquietante de pessoas que tinham muita pressa de encher suas sacolas. Mas sempre pechinchavam antes. Falando sem parar, num vozerio totalmente singular pela mistura dos diferentes idiomas e dialetos.

De onde estávamos podíamos observar o movimento contínuo e aquilo nos divertia muito. Ficávamos na calçada, debaixo da ponte, entre árvores centenárias e gigantescas colunas. Permanecíamos ali por horas, à espera do final das compras.

Os mercados basicamente se situavam na praça, que era extremamente opulenta, não só pelo comércio, mas também pelo contexto que a envolvia. Era comum circularem pessoas estranhas, vindas de muitos lugares; como o homem cujas roupas lembravam vestimentas militares, um tanto surradas, dispensando a garbosidade.

Costumava ficar caminhando de um lado para o outro da praça, inticando com os taxistas. Soprava um apito encenando manobras militares, quase teatrais, gestos tresloucados, figura estranha, com traços fortes, aparentando um metro e sessenta, tez morena, astuto inocente. Sempre que alguém, desavisado, o chamava de negro, prontamente retrucava ser “andino”, dos Andes, dizia; um pobre mendigo.

Usava uma boina negra com a figura de um homem estampada na lateral, um rosto familiar, com barba cerrada, cabelos revoltos sobre a face – “Guevara”, diziam, nome que, para nós na época, pouco importava, mas fazia com que os “milicos” não o deixassem em paz. Quando era abordado, fugia, tirando, rapidamente a boina da cabeça, indo se esconder nos arbustos da praça. Logo estava ele em meio à multidão, como se tivesse feito uma saída estratégica e retornasse vitorioso. Uma guerra de um homem só. Louco? Para nós era só o guarda da praça...

Muitos tinham duvidosa sanidade, mas todos davam sua parcela de contribuição. Nos dias confusos da beira do cais, a fartura de biscates atraía pessoas de todos os lugares. Tinham alimentos que sobravam das exageradas refeições dos Castelhanos, ampla oferta de trabalho e os arcos da ponte como abrigo, e ainda as águas do rio para deleite dos dias de sol.

Nossas atenções estavam nos compradores compulsivos, pois o final das compras já se aproximava e todos estavam com as sacolas repletas de compras, já apresentavam sinais de satisfação. Isso tudo nós observávamos enquanto nos dedicávamos à prática de cuidar os carros para os castelhanos que vinham as compras nos supermercados do Brasil, isso nos rendia uns trocados extras que se somariam as demais propinas das travessias das mercadorias.

Sabíamos que mais uma jornada de travessias estava chegando, e todos se esmeravam em conseguir o maior número possível de castelhanos que nos deixassem levar suas “bagagens” ao outro lado da divisa, onde aguardavam a partida do trem. A espera era longa, a máquina costumava partir por volta da meia-noite, por essa razão, todos tinham tempo de sobra para trabalhar, o vaivém pela ponte se dava inúmeras vezes e a quantidade de travessias significava muitas propinas.

Ao iniciar as travessias, alguns levavam duas, às vezes três sacolas; outros seguiam em duplas, cada um pegava uma das alças e assim compartilhavam várias viagens ao longo da tarde.

Na realidade, a tarefa entre dois era menos árdua, porém representava maior perigo. Dessa maneira, éramos mais visualizados pelos guardas do país vizinho, que nos vigiavam, ininterruptamente. Sempre a postos para confiscar as mercadorias, que já eram ilícitas pelo próprio volume, sempre bastante acima do permitido; outras com produtos totalmente proibidos, como bebidas e fumo.

Sozinhos tínhamos a oportunidade de passar quase despercebidos entre os milhares de compradores que retornavam à estação para aguardar a hora da partida. Para eles havia um tratamento diferenciado por parte dos guardas, a propina dos compradores uruguaios comprava a cordialidade dos homens da “lei”, que vestiam elegantes trajes azuis, com medalhas colgadas no peito, o que lhes enchia de soberba. Em seus olhos reluzia honestidade quase incorruptível, quase. Pois ali aprendemos que a honestidade tinha um preço. Para ser mais claro, a deles custava dez moedas de Peso. O suficiente para que a vergonha passasse incólume, dando lugar a uma postura ética momentaneamente inabalável.

Vistas grossas, algumas propinas e lá seguiam milhares de pessoas como formigas no trabalho árduo do verão. Fixaram-se na minha memória rostos com olhares ásperos, mas que, ao mesmo tempo, deixavam fugidias fagulhas de satisfação; certamente por terem conseguido passar sem maiores problemas, suas esbanjadas compras. Seguíamos juntos, como se fizéssemos parte de um acordo cordial e de cumplicidade entre os civis e militares.

Por fim, depois de tantas idas e vindas entre as torres pálidas, nos restava a última travessia da tarde. E, nessa, trazíamos as sacolas o mais cheias possível, uma vez que os guardas já não mostravam tanta vontade em exercer o controle. Pareciam satisfeitos, com seus bolsos cheios, a ponto de não notarem nossas presenças.

Agora precisávamos apenas juntar as últimas bagagens às demais que havíamos deixado no outro lado, de onde em seguida, seriam levadas em bolantas, como eram chamadas as carroças uruguaias puxadas por cavalos, até a estação. Assim que juntávamos todas as sacolas, estávamos prontos para o momento mágico, o sol estava prestes a beijar a barranca que dividia as duas pátrias.

O rio, como de costume, mostrava-se belo nesse horário, ajustava-se perfeitamente à ponte que sustentava as magníficas torres. Estas por sua vez refletiam o brilho da pedra grés, sobre as águas calmas das tardes de abril. Buscávamos as sombras dos salseiros, outras vezes sentávamo-nos em meio aos últimos raios do sol, uma bergamota na mão e pronto, “lagarteando”, esperando as pessoas para apanharem suas mercadorias e, finalmente, recebermos nossa propina. O valor era definido por cada sacola. Geralmente ganhávamos dez pesos em cada uma delas; recebíamos um bom dinheiro, dada a nossa idade.

Alguns de nós, por vezes, ganhávamos mais do que nossos pais; muitos sustentavam suas famílias e passavam a ser chefes do lar desde cedo.

Quando os compradores chegavam, recebíamos nosso pagamento e, logo, retornávamos para o comércio da praça, este então bem mais calmo. E chegava à hora de negociarmos com os lojistas as mercadorias que, à noite, venderíamos na estação; era comum pessoas comprarem doces e quinquilharias enquanto esperavam a partida do trem.

No deslocamento para efetuar as compras, podíamos ver ao longe as agências de ônibus lotadas, elas transportavam os compradores mais endinheirados. A passagem de ônibus era dez vezes mais cara do que a dos vagões. Nestas, nós também vendíamos balas, bombons, e outras mercadorias. Quando estávamos com sorte vendíamos tudo, sem precisar ir até a distante estação, e acabávamos retornando mais cedo para o nosso país.

Nunca tínhamos certeza se à noite nos reservaria sorte ou azar. Qualquer mascate sabe que é impossível prever isso. A única previsão certa que tínhamos era o frio e o breu da noite que já se apresentavam, dando oportunidade de negócios para os areeiros e seus barcos a motor, cujo barulho se misturava às rajadas de metralhadoras no meio do rio. Eram os últimos bagageiros que tentavam levar mercadorias acima do permitido, usando o transporte fluvial. Muitos optavam por essa prática porque não aceitavam dar propinas para os aduaneiros. Algumas vezes conseguiam atravessar o rio com sucesso, em outras não tinham tanta sorte e acabavam presos ou simplesmente sumiam junto com a embarcação: as metralhadoras saíam vitoriosas.

Por mais de uma vez, areeiros “chibeiros” amanheciam boiando nas margens do rio. As autoridades, por cuidados diplomáticos, colocavam a culpa nos barcos por serem velhos e não possuírem segurança adequada; porém, as razões pelas quais os corpos, geralmente não eram encontrados, ninguém sabia. Não se via velório, funeral, bote ou mercadoria, apenas boatos e silêncio por parte das autoridades. A diplomacia com a nação vizinha era mais importante do que um simples desconhecido sem reclamantes.

Muitas vezes ouvi alguns meninos contando que, do dia para a noite, nunca mais viram seus pais, talvez tivessem sido exterminados pelas rajadas noturnas no pontal do rio, ou apenas uma fantasia...

Morrer ou viver era uma incógnita, nunca se pisa firme em terras estranhas, estávamos sempre à mercê do perigo. A maioria precisava trabalhar desde cedo para ajudar em casa, mesmo que para isto fosse necessário abandonar os estudos. Esse não era o meu caso, sentia-me privilegiado, mesmo não tendo um incentivo extremo, em minha casa poderia continuar a estudar. Sempre assumi ser o único responsável por escolher esta vida na qual um dia entrei.

Perdi a noção do tempo, a ponte e as travessias se tornaram um vício, encontrei pessoas que me escutavam, considerando o mundo que vivíamos e conquistei o respeito de todos. Penso que isso faltou em minha casa: elogios, confiança. Talvez a falta constante de alguém acreditar em mim tenha me levado a buscar num outro lugar o meu eu – era apenas a necessidade de ser alguém. Com certeza, o reconhecimento é alimento da alma e a alavanca para o crescimento, um líder falava mais alto em mim.

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