Segundo Capítulo

 
 
 
O Algoz

Depois de muitos meses trabalhando, depois de muitas idas e vindas do subúrbio ao centro, já tinha conquistado uma turma grande de amigos, que assim como eu também trabalhavam na ponte, naquela tarde antes de chegar ao nosso trabalho resolvemos dar uma passada e conferir o movimento que acontecia na principal avenida da cidade. Logo percebi que aquele dia não seria igual aos outros e que aquele cenário ficaria marcado como único em minha vida. A cidade, que na maioria do tempo era pacata na zona central, estava irreconhecível, as pessoas disputavam lugares nos meio-fio das calçadas.

- Cheguem pra lá meninos... Dizia uma senhora bem trajada, com um chapéu ornamentado de flores, que disputava uma visão privilegiada entre os milhares de pessoas que se aglomeravam na avenida Vinte Sete de Janeiro no centro da cidade.

E lá estávamos nós, meus amigos e eu, tirando um tempinho antes de irmos para a ponte.

- Vamos dar uma olhada e temos que ir embora, ta cheio de castelhanos fazendo compras na ponte. Gritava a toda goela o Odilon, que era louco por pesos, era o primeiro a chegar e o último a sair do trabalho.

- Vamos ficar mais um pouco, se todos estão aqui é porque vai ter coisa boa, deve ter até comida...

Comida não tinha, mas o Adãozinho tinha razão, aquela era uma tarde especial e todos queriam testemunhar os acontecimentos sem perder nenhuma cena. As tropas militares estavam nas ruas, prestando homenagens nunca antes vista.

Em meio à multidão, os milicos do 33º Batalhão de Infantaria, com suas fardas impecáveis, mostravam toda sua força, desfilando com garbo e passos sincronizados. Marchavam prestando continência a alguém poderoso, arrogante. Algoz para alguns, para outros, no entanto... João Baptista, o Presidente, montado em seu recente, mas costumeiro regalo, “Faceiro de Santa Edwiges”, um cavalo igualmente altivo, um belo crioulo, que era do criador Daniel Anzanello e estava sob os cuidados do Cel. Bayard Bretanha, encarregado do presente enquanto permaneceu nas terras da fronteira.

Ainda posso lembrar cada detalhe daquele abril de 1980, jamais esquecerei nem poderia. De alguma forma sabia que ali, naquele momento, estava testemunhando algo que dificilmente se repetiria: as faces daquelas pessoas, norteadas para aquele ilustre ditador que se fazia presente.

Mesmo desconhecendo a origem do visitante, sua trajetória, suas idéias, eu não tive dificuldade para descobrir de quem se tratava. Seu nome estava nos brados dos soldados e também no de milhares de pessoas que o aclamavam, agitando suas bandeiras verde-amarela, gritando a toda voz: “Figueiredo, Figueiredo!”. Seria algum deus? Certamente não era o Deus que minha mãe exaltava aos sussurros no seu leito antes de dormir. Nem o Deus que tinha colocado o destino para o Adãozinho, o Odilon e para mim.

E mesmo aquele maioral não tendo importância alguma para nós, jamais lembro ter visto tantas homenagens, fogos, acenos em uma só tarde, na pequena cidade do interior. Aquele único homem, com uma faixa em diagonal ao peito, sobre o dorso do cavalo, conseguira esse feito.

Mesmo diante de tanto poder, e seguranças por toda parte, alguns, corajosamente, manifestavam-se aos gritos contra o general João Baptista Figueiredo, que havia assumido a Presidência em 15 de março de 1979, enfrentando logo no início de seu governo o fim do "milagre econômico". A taxa de crescimento do PIB caiu rapidamente. A crise econômica significava também o desemprego e a queda do poder aquisitivo dos salários comprometido pela inflação, que já no inicio dos anos 80 alcançava a casa dos 77,2%. Nessa época ocorreram movimentos grevistas em todo o país, envolvendo milhares de trabalhadores de várias categorias, que reivindicavam melhores salários. O governo federal reprimiu esses movimentos, intervindo em sindicatos, destituindo suas diretorias e prendendo seus integrantes.

Nossa pequena cidade era ditada pelos poderes militares, os prefeitos eram indicados pelo Presidente da República, os merecedores de tal indicação em sua maioria eram aqueles das belas casas e de famílias tradicionais, com certeza meu pai nunca seria indicado para ser prefeito, talvez ai estivesse um pouco da explicação que buscava.

Mas a população da fronteira em sua maioria estava adorando a famosa crise nacional, já que o comercio da fronteira vivia na contra mão da economia nacional, se nossa moeda estava desvalorizada, a moeda dos castelhanos estava valorizadíssima e isso contribuía para a vinda deles a nossa cidade, o que rendia um bom comércio para as nossas lojas e mercados e assim gerando emprego por todos.

Mesmo assim existiam aqueles que eram contrários ao regime imposto pelos militares, os enlouquecidos manifestantes, como eram conhecidos na cidade, eles exigiam milhões de coisas, dentre essas, a libertação de algumas pessoas: José Sales de Oliveira era um deles. Estava encarcerado em Fortaleza, e muitos diziam que era o último preso político a permanecer em reclusão depois da decretação da anistia do país.

Hoje consigo entender a grandeza daqueles grupos diminutos, com folhetos e cartazes nas mãos, ora em manifestos, ora recuando ante as ofensivas dos infantes, que pouco os intimidava: a causa era maior; a ditadura já não estava tão poderosa assim, a desistência era impossível!

Havia centenas de papéis espalhados pelo chão, os mesmos que às escondidas apareciam nas salas de aula com os professores mais corajosos, os quais mostravam que depois de vários protestos, foi concedida liberdade condicional a Rholine Sonde Cavalcanti e Luciano de Almeida, em fevereiro. Também lembravam o sofrimento de Flávia Schilling, que durante sete anos cumpriu pena em um cárcere no Uruguai. Naqueles dias existia uma forte pressão popular no país, devida à displicência do governo em libertar os presos políticos.

A ditadura estava mais branda, mas mesmo assim episódios de autoritarismo marcavam a toda hora o país, como o caso do Padre italiano Vito Miracapillo, que havia sido expulso do território nacional após se recusar a rezar uma missa de aniversário da independência do Brasil.

Deixava-os para trás, e seguia minha caminhada, acompanhado pelos meus amigos... Armazenei em minha memória cada momento daquela tarde, como se soubesse que ali estava testemunhando um momento que ficaria para a história. Lembro que mesmo sem ter muito a ver com a maioria daquelas pessoas – “patriotas” –, tentava entender por qual motivo tinham olhares melancólicos, ao longe. Pareciam não ter vontade própria, concordavam com tudo, como numa bela encenação teatral.

Eu buscava exatamente o oposto: fazer aquilo de que tinha vontade, era meu maior e melhor pecado, porém, acreditava fielmente ser assim a maneira certa. Mesmo que tivesse que contrariar a maioria, “sociedade conformada”, dignos de pena, penso que simpatizava mais com as expressões naturais dos contrários, os enlouquecidos como dizia o Odilon.

Aos poucos ia me afastando das avenidas largas do centro e, logo na chegada da parte baixa da cidade, estava diante de outra movimentação, que se repetia dia após dia. Setembro era um mês como qualquer outro, o que importava era o movimento, não o acontecimento, e posso até dizer que isso era bem mais compreensível no meu modo de ver.

Eram pessoas que passavam a mancheias trazendo sacolas de diversos tamanhos, coloridas. Por serem muitas, seguiam em ordem e em constante movimento; mesmo que não houvesse fardas ou brados de guerra, havia certa parecença com aquelas paradas militares, à época, impressionantes para mim.

Depois de passar por todos, chegava ao antigo mercado, construído em 1864, que ficava nas proximidades do rio. Como de costume, toda a tarde juntava-me a outros garotos de minha idade que assim como eu, cheios de fantasias e esperanças.

Quase um ano havia se passado, parecia que havia sido ontem que tinha entrado naquele mundo, mentindo para os meus pais, deixando os estudos para segundo plano, e durante todo esse tempo dificilmente um dia foi igual ao outro, isso me satisfazia e me levava cada vez mais na busca de novos desafios.

Nossas passadas diárias pelo mercado tinham uma razão especial, o sorvete artesanal feito pelo tio do sorvete como carinhosamente chamávamos o dono da sorveteria.

- Vamos embora pessoal... Entoava com uma voz de líder o Danúbio, que era o mais velho da turma.

Nessa altura já éramos mais de dez sacoleiros lambuzados de sorvete. Ainda hoje guardo a imagem de cada um deles, Adãozinho, Toco Zé, Danúbio, Pasteleiro, Marreco, Guinho, Nei, Galinha, Torança, Odilon e eu, que mesmo com quase um ano naquela vida, ainda estava descobrindo aquele mundo que mudava dia a dia, nem sempre pensávamos do mesmo jeito, tínhamos diferenças, mas sempre gostei e apoiei aqueles que divergiam que argumentavam seu posicionamento, nunca gostei das pessoas que ficam em cima do muro, concordando com tudo. “Quando duas pessoas em um grupo pensam a mesma coisa, uma delas é dispensável...”

Todos os dias repetíamos o mesmo ritual: Já nas proximidades da ponte ficávamos nas sombras dos plátanos, aguardando os acertos entre comerciantes e compradores. Permanecíamos atentos a todos os movimentos e aproveitávamos para colocar os assuntos em dia e combinar como faríamos as travessias das mercadorias no fim da tarde, quando os compradores começassem a retornar. Muitos chegavam cedo e terminavam suas compras, outros acabavam de desembarcar, trazidos pelo trem, que costumava chegar antes mesmo do sino da velha e pomposa igreja dar a ensurdecedora, porém pontual, badalada das doze horas.

Rapidamente, a praça já estava tomada, os ônibus de turismo chegavam um pouco antes do trem, eram centenas, milhares de viajantes, com sua língua forte carregada por um sotaque singular, ríspido. Chegavam do país vizinho, com sua moeda em peso de ouro diante da nossa diminuída.

Nesse ano, para o delírio da fronteira, o governo anunciava medidas econômicas tomadas pelo Conselho Monetário Nacional, arrasando o cruzeiro, que já sofria sua terceira desvalorização em apenas um mês. Ter uma moeda forte significava poder e tratamento especial.

Os castelhanos tinham em abundância essas vantagens. “O peso” era a mais importante moeda naquele tempo de comércio incessante que sustentava toda a região. Todos viviam em torno dele. Havia centenas de ofertas de empregos, era o milagre do comércio informal.

A cidade precisava dos compradores, eram os maiores responsáveis pelos tempos de farturas. Caracterizavam-se pelas dezenas de sacolas que traziam e a constante invasão aos mercados.

Bastava raiar o dia e pronto, pessoas de todas as raças, matizes, credos, compartilhavam do mesmo ímpeto: Comprar tudo quanto coubesse nos assentos de “madeira lei” dos vagões puxados pela antiga locomotiva, que percorria diariamente a estrada férrea do centro de sua República Oriental à divisa da cidade da pechincha, como era conhecida a pequena Jaguarão.

Era uma viagem deveras cansativa, passava por várias localidades, até chegar à estação da divisa. Ali ficavam apenas aqueles que não vinham em busca das compras. Os demais seguiam ate a última parada, ao pé das torres, onde eram recebidos por inúmeras pessoas, que ofertavam trocas justas na cotação das moedas.

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