Quarto Capítulo

 
 
 
O Comércio

Minha vida, minha pústula, “pertinácia”, tinha a convicção que jamais poderia deixar a ponte e os que em torno dela viviam. De costume, ao cair da noite, estávamos de volta à praça do mercado, os empórios nos aguardavam. Já não se viam mais castelhanos ou “chibeiros”; nós tínhamos dinheiro e éramos atendidos com atenção pelos proprietários. Eu costumava comprar várias caixas de chocolate: O produto tinha venda certa, não havia tanto risco, além de ser apreciado pelos paisanos. Alguns dos meus colegas compravam balas e amendoins, outros preferiam “alfajor”, doce tradicional na região.

Naquela noite, como nas demais, um de nós seria a “mula”: Levaria a carga perigosa, geralmente fumo e cachaça, enquanto dávamos cobertura. A escolha era no palitinho, jogo típico da gurizada da fronteira; eu estava com sorte, o azar tinha ficado com o Pasteleiro, como era chamado o atravessador mais gordo da turma. Jamais entendi o porquê de ele permanecer na ponte. Além de ser o mais azarado, dificilmente conseguia vender seus pastéis – era costumeiro que, antes mesmo de oferecê-los, os outros os tomassem à força. Sempre que o pobre coitado esboçava alguma reação, era literalmente amarfanhado. Era o lado cruel do nosso pequeno mundo, mas o que podíamos fazer? O próprio amor, sentimento maior, tem seu lado atroz, como não o teríamos?

Não ser a mula do dia era tranquilizador: O escolhido era responsável por levar mercadorias de alto risco para os demais e a punição aplicada pelos aduaneiros era extremamente severa pelo contrabando de perfumes, bijuterias, facas, bebidas e tabacos. A “mula” apanhada pelos guardas era tida como incompetente, sendo perdoada somente quando pagasse o prejuízo de cada um. No começo, várias vezes precisei trabalhar dobrado para os outros! Com o passar do tempo, ao adquirir experiência e descobrir o preço de cada guarda, tornei-me difícil de ser apanhado. Os iniciantes, porém, eram presas fáceis, a farda ainda refletia nos olhares imaturos dos recém chegados: Idoneidade e respeito.

Homem mula pronto, mais uma noite nos aguardava, pegávamos as mercadorias e partíamos. Era uma longa caminhada sobre os trilhos, mesmo assim, caminho mais curto para chegada, “atalho” à estação. Normalmente tínhamos uma turma de dez a doze meninos dando cobertura ao azarão. Não nos preocupávamos com ele, mas com nossas mercadorias que viajavam sobre seus ombros.

Depois que passávamos a aduana, mais tranquilos, aproveitávamos para fazer coisas diferentes, como fumar. Lembro quando fumei meu primeiro cigarro, fiquei tonto e logo tive uma crise de tosse, mas me acostumei à nova mania. Sempre alguém levava cigarros e revistas eróticas, coisas que ajudavam a passar o tempo.

Escutávamos música durante a caminhada. A rádio local tinha uma programação de músicas românticas. Todos cantavam as canções da época, um coral de vozes desafinadas ecoava na noite disfarçando o medo da escuridão. Tentávamos imitar os cantores sertanejos que conquistavam o país naquele ano. Nessa época eu já arranhava o violão, incentivado por poesias e canções, letras que envolviam a todos, com suas histórias do cotidiano amoroso. Ninguém queria mais saber das baladas da década de 70. Eu preferia as músicas antigas, mas as duplas eram incontestáveis: Todos gostavam.

Quando tínhamos folga, geralmente nos dias em que não havia trem, todos frequentavam o Bar do Michel, no lado brasileiro, onde o ritmo principal era a moda de viola, aliada às brigas e confusões; o ambiente era conhecido por juntar a “marginalia” e as prostitutas da fronteira, aliadas as drogas da época; inegavelmente, foi minha escola de música, que anos depois me serviria tanto... A sabedoria está em pegar o que tem de bom...

Entre um bom papo e risadas as horas voavam e em pouco tempo estávamos próximos do nosso destino, alguns metros antes da chegada, acertávamos as últimas estratégias de venda dos produtos. Sentíamo-nos bem à vontade no breu que turvava os trilhos; a noite só nos deixava um clarão, a luz intensa dos holofotes que iluminavam hangares dos trens, pois entre os eucaliptos que enleavam a velha estrada de ferro nem mesmo a lua conseguia entranhar-se com sua luminosidade.

Enfim havíamos chegado à estação férrea de Rio Branco e começávamos a vender nossos doces nas salas frias que ficavam tomadas de sacolas e bugigangas. O grito era unânime: “Três por dez, três por dez”. Pedíamos dez míseros pesos por três bombons, oferecendo a todas as pessoas que permaneciam sentadas nos assentos de pedra, esperando que as ordens dos aduaneiros chegassem para começar o embarque das mercadorias. Era mais uma boa oportunidade de ganhar dinheiro, pois nem todas as sacolas conseguiam cruzar a fiscalização da aduana, mas nós tínhamos facilidade de carregar um volume de mercancias acima da cota permitida nos vagões.

O breu da noite era nosso aliado, podíamos burlar os guardas. Embarcando as sacolas pelo lado oposto dos vagões, depois as escondíamos embaixo dos assentos e ali aguardávamos que seus proprietários subissem e ocupassem suas poltronas; a propina era imediata. Pior seria perder a maioria das compras ou ter que corromper os guardas, que cobravam bem mais do que nossos lhanos preços.

Nossa única concorrência eram as prostitutas que trabalhavam em um cabaré situado na frente da estação. Elas faziam programas de graça com os guardas e tinham liberdade total para passar quantas sacolas quisessem, sem maiores problemas. Nossa sorte é que as senhoras uruguaias que acompanhavam seus maridos não gostavam muito das moças e suas vestimentas um tanto fora dos padrões normais. Mesmo assim, mantínhamos uma disputa amigável com aquelas mulheres de vida fácil, como eram conhecidas. Muitas vezes acabávamos vendendo doces para elas e ainda ganhávamos beijos picantes, que nos faziam sonhar por alguns instantes, mergulhados no perfume barato de almíscar.

Depois de embarcar todas as mercadorias ilícitas e armazená-las junto às permitidas, que obedeciam à quantidade certa, voltávamos ao saguão gélido, onde as pessoas aguardavam o trem, que partiria cheio de compras e contrabandos, para abastecer as tendas do centro da República Uruguaia.

O ganho dessas mercadorias era quimérico, algumas eram comercializadas por cem, duzentas vezes mais do que o preço da fronteira. Era um lucro babilônico, o suficiente para não se importar com os riscos e cansaços da viagem.

À meia-noite, o cincerro do corredor dava o primeiro sinal, o pujante trem se preparava para partir. Nessa hora aproveitávamos para vender os últimos chocolates, a correria era colossal, a disputa pelas vendas, quase brutal, o empurra-empurra era a maneira mais cordial. Naquela altura a lei do mais forte estava em plena ação, até a última venda.

Quando desembarcávamos, o trem já estava em movimento. E o inacreditável era que todos voltavam amigos, “negócio, negócio, amizades à parte”. O dia de trabalho estava findando, o regresso era longo, e certamente o amanhã seria tão intrincado quanto o dia que estava prestes a terminar. Nosso retorno da estação para a casa, na maioria das vezes era a pé com os outros meninos, até chegarmos à localidade da Coxilha.

Depois de uma longa caminhada, a parada nas carroças de Pancho era obrigatória. Elas eram semelhantes aos dogs brasileiros, e ali permanecíamos durante horas. Além de matarmos a fome, aproveitávamos para contar os lucros que havíamos ganhado.

Quando as agências de ônibus atrasavam suas partidas, por estarem próximas de onde costumávamos parar, investíamos nos últimos clientes para “desovar” as mercadorias que sobravam das vendas na estação. A regra era não retornar com mercadorias para o Brasil. Caso isso acontecesse, o destino era ser saqueado pelos aduaneiros. Eu preferia comer tudo ou jogá-las no rio a entregá-las aos guardas corruptos. Nossa convivência com a polícia uruguaia era extremamente delicada, as fugas e provocações eram diárias, e muitas vezes acabávamos presos, passávamos a noite no cárcere e logo pela manhã éramos “corridos” para o Brasil.

A polícia uruguaia adorava nos maltratar: Além de ficarmos enjaulados nas celas frias da beira do rio, normalmente éramos obrigados a lavar as privadas de toda a aduana. Nossa vingança não tardava – sempre que os aduaneiros e policiais vinham ao Brasil fazer compras, saíam com seus carros cobertos de arranhões. Conhecíamos cada aduaneiro de Rio Branco. Não poderia ser diferente: Quem apanha nunca esquece, e por essa razão o vandalismo era aplicado com muito gosto.

Os dias e as noites na vida de contrabando eram arriscados e muitas vezes ingratos, mas também a cada dia que se passava a vontade de permanecer era maior, um vício que se adquire em virtude da ganância. Contar dinheiro é um hábito maravilhoso e consegui-lo com risco, embora não seja a maneira correta, era excitante. A disputa, o jogo, o desejo de ser o melhor entre os que o acompanham passam a fazer parte da luta diária. Dessa forma alguém desconhecido surge de dentro de nossa alma e dita nossa vida, sedenta por aventura, alguns meninos na infância se contentavam em sonhar, nós queríamos a realidade.

Às vezes me pergunto... Imoral, inadequado, quem poderá dizer, na imaturidade as regras sociais e morais passam quase que despercebidas, daí a razão pela qual poucos que vivem uma iniciação de vida contemplada pela imoralidade se regeneram. Nessa hora a compreensão é fundamental, mas em uma sociedade hipócrita poucos têm a sabedoria de compreender e orientar, mostrando o rumo certo do futuro. Costumamos fazer a nossa parte dando algumas moedas nas sinaleiras, mas será que estamos cumprindo nosso papel social, ou estamos fugindo da nossa responsabilidade e obrigação moral de educar e aconselhar?

Foram muitos dias naquela ponte, um pedaço de mim estava naquele concreto, enraizado, entranhado naquela vida, eu estava há mais de dois anos desempenhando o mesmo trabalho. Do carregamento das bagagens no trabalho formiga à venda de doces, na estação, já tinha passado por todas as provas que alguém poderia passar no trabalho daquela fronteira: O frio, as madrugadas, a perseguição dos guardas, todos os obstáculos quase insuportáveis. Era o próprio inferno – longas caminhadas às escondidas pelos trilhos e a geada, que cortava nossas mãos; muitas vezes, ficávamos completamente encarangados. Era um inverno impiedoso o do extremo sul.

Recebemos uma grande lição nos dias que permanecemos naquela ponte: Aprendemos o quanto vale a vida. Mesmo quando não se espera quase nada, ela pode mudar o destino e fazer do simples uma grande vitória; todos esses ensinamentos mostraram-me que já estava capacitado para começar as esperadas viagens rumo ao centro do Uruguai.

Ficar trabalhando por um longo período nas proximidades das duas cidades, Jaguarão e Rio Branco, era imprescindível. Só assim viria o preparo para vôos mais altos, como as viagens ao centro do Uruguai. Muitos dos amigos que conviviam comigo já estavam vendendo mercadorias mais rentáveis, nos mercados das cidades próximas a Montevidéu. Por todas essas razões, e também visando maiores lucros, decidi que também estava preparado para as sonhadas viagens.

Assim decidi investir todas as minhas economias e as apliquei em mercadorias que satisfizessem os comerciantes das localidades de Trinta e Três e Vergara, cidades com grande quantidade de comércios, os quais, em sua grande maioria, trabalhavam com mercadorias compradas dos viajantes brasileiros.

Já havia tomado a decisão de começar a viajar, já estava mais de um ano na ponte, assim, naquele julho de 1982 coloquei as mochilas nas costas repleta de novidades, me aconselhei com os piores conselheiros que havia, pois eram os melhores para tal trabalho, e busquei um único destino, a estação de Rio Branco. Não só para vender doces no trem, enquanto permanecia parado na estação, mas para minha primeira viagem. Dessa vez o trem partiria comigo a bordo.

Por alguns instantes o medo me rondava, ninguém podia prever os acontecimentos de uma viagem com contrabando, não se tratava mais apenas de doces, balas, agora eram mercadorias que abasteceriam os mercados do Uruguai, a “policía camineira” do país vizinho dava “incertas” nas estações de pequeno porte, que existiam nos vilarejos de passagem do trem. Eu estava bem avisado do risco que corria, mas minha vontade de crescer, me aventurar e faturar dinheiro era muito maior que o medo.

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