Sexto Capítulo

A Família

O trabalho na ponte era totalmente atípico. O bairro, a família, a escola não pertenciam ao mesmo mundo. Percebi rapidamente que cedo ou tarde as duas vidas ao meu redor iriam se confrontar, trazendo enormes problemas, os quais eu não estava preparado para enfrentar.

Todos os que trabalhavam na ponte eram automaticamente banidos da sociedade, por isso, criamos nossos espaços, o Bar do Michel era um dos locais das nossas diversões. No Uruguai, como não éramos muito conhecidos tinha vários lugares para frequentar, porém no Brasil só no Michel tínhamos entrada permitida.

Éramos rejeitados, a fama da bagunça nos punia severamente. Sempre que retornávamos das viagens ao Uruguai, nos encontrávamos para noitadas de violão e prostituição. O passaporte para a permanência no “escroto” local era o vandalismo: Brigas e obscenidades eram obrigatórias e mesmo assim tínhamos um local que nos entendia sem preconceito, sem vergonha, sem cobranças. É claro que o dono tinha um lucro satisfatório, entregávamos uma grande parte dos lucros das viagens no balcão do bar. Ali me sentia uma personalidade, tocando, cantando, recebendo aplausos e sorrisos, que na maioria das noites me acompanhavam até o amanhecer. Nos momentos de sensatez, porém, tinha consciência de que mudar era preciso. Só havia um destino para os alienados e rebeldes sem causa e esse não deveria ser o meu.

Eu já estava no limite, totalmente apavorado, a única coisa de que tinha certeza era a necessidade de acabar com a vida que havia levado nos últimos tempos. Não tinha mais forças para manter as lutas diárias, percorrendo os mesmos caminhos, correndo os mesmos riscos, permitindo que as longas madrugadas tomassem meus sonhos, dando-me em troca aflições e lágrimas e, sem notar, deixando mais distante a cada momento o mundo que abandonei naquela tarde de algum mês do inverno de 1979, quando pela primeira vez cruzei as magníficas torres pálidas em direção ao gigante de ferro e seu comercio ilícito.

Como de costume depois de toda bagunça da noitada de violão acabei em um hotel de quinta, deitado em algum braço que nem sabia de quem era, na manhã seguinte logo quando acordei, olhei no espelho envelhecido do banheiro e me dei conta que o tempo havia passado, já estava com quase 15 anos cheios de vida e experiências precoces. Olhei para mim mesmo e tirei coragem do fundo da minha alma, buscando o que eu tinha de melhor e decidi que deveria mudar a minha vida, coloquei minha roupa e sai sem olhar pra trás, deixando ao fundo uma voz que me chamava lentamente, e sumia a cada passo que eu dava.

Eu sabia que não sairia daquilo tudo da noite para o dia, como um passe de mágica, mas pelo menos eu estava disposto a sair, tinha uma meta, sabia que uma nova vida era a única saída. 1984 mostrava-se arrasador, era a oportunidade que eu tinha de começar uma nova vida e não tardei a começar tudo de novo, mesmo que do zero.

Meus quase quinze anos de vida, levavam-me ao encontro da conjuntura social de ambas as nações em que vivia, descobrindo boas novas que transcendiam meu pequeno mundo. A política era o mais importante do momento, ela estava em todos os bares e esquinas, as questões partidárias, embora transcendessem meus conhecimentos, sempre chamaram minha atenção. Meu espírito de liberdade logo me jogou para o posicionamento das pessoas que lutavam pela liberdade de expressão.

Como todos naquela época, eu também acompanhava atento o novo movimento que surgia no país. Eu tinha apenas quinze anos, mas muita vivência, o suficiente para entender o que se passava. Nas grandes cidades aconteciam manifestações contrárias ao regime militar, os jornais e rádios, noticiavam manifestos em todas as cidades apoiando as Diretas-já e pela aprovação da emenda que chamavam Dante de Oliveira.

Havia notícias de que em Porto Alegre cento e cinquenta mil pessoas teriam ido às ruas, também em Pelotas cerca de quarenta mil. Todos estavam alentados pela democracia, essa era a nova razão de viver. Personalidades como Franco Montoro, Tancredo Neves, Leonel Brizola, entre outros, queriam que as pessoas não se escondessem mais para falar. Embora os militares ainda governassem o país, a farda estava desgastada, tinham problemas com a Igreja e a sociedade; o povo pedia que o amor à pátria fosse demonstrado por vontade própria, sem que lhes fosse imposto goela abaixo.

Enfim algo em que eu acreditava estava tomando forma - “a liberdade” – era como se eu tivesse mostrado a todos que o arbítrio não valia à pena, e todos me seguissem, desta vez, sem me condenar, poderia ser uma fantasia minha, mas a liberdade era minha maior busca, sendo assim de certa forma eu fazia parte daquele movimento que movia o País

Mesmo com pouca idade me considerava um homem em meio àqueles movimentos, senhor da minha própria vida, do meu destino. O mundo havia se mostrado para mim, começava a vê-lo com outros olhos e buscava a coragem para o meu lado. Fiz da superação uma aliada constante.

Mas o enfrentamento com minha família era um bloqueio que eu não conseguia romper. O retorno a minha casa era diariamente adiado. Várias vezes chegava até as proximidades, mas não conseguia chegar. Não tinha coragem de enfrentar as inúmeras perguntas que meus familiares fariam, em meio às condenações, afinal, estava quatro meses sem aparecer. Minha família não admitia tamanha liberdade que eu buscava, embora meu pai pertencesse aos contrários. Independência, liberdade, as maiores bandeiras do sistema, não combinavam com minha idade.

As dificuldades aumentavam a cada dia, mal dava para pagar o aluguel que dividíamos entre seis companheiros, em uma residência na baixada, um dos subúrbios mais pobres da cidade. O comércio não era intenso como no inicio da década de 80; permaneciam trabalhando apenas aqueles que, como eu, ao longo dos anos, colecionaram dívidas, quase impagáveis. Aos poucos os comerciantes foram parando de fornecer mercadorias. Além do risco, o lucro era muito pequeno, as vendas nas lojas pioravam a cada dia e cada vez diminuía mais a vinda dos castelhanos.

Os tempos eram outros, a liberdade estava à nossa frente, a democracia se tornava real, as pessoas em todo o país vibravam, mas o preço da liberdade era alto para a fronteira. O descontrole da economia nacional, sob comando dos militares durante anos, fora nosso aliado. As novas reformas econômicas caíam como uma bomba na pequena fronteira, mudar era preciso, mas não era preciso o que poderia acontecer no comércio da velha ponte. Era inevitável uma crise de ambos os lados, o novo sistema político transformou o mercado e a divisa iniciou seu processo de desmoronamento. Aliado a todos estes fatores, a ânsia de manter os acertos, como costumávamos fazer, nos levou a uma crise ainda maior, até o momento em que não existiam dinheiro nem o que vender. Sem mercadorias, sem créditos e com muitas dívidas.

Por mais estranho que pareça, mesmo que não desfrutássemos de pejo e educação, tínhamos uma necessidade coletiva de saldá-las, mas logo notamos que a melhor maneira seria abandonar a idéia de seguir trabalhando para pagar as contas. Despir um santo para vestir outro estava se tornado perigoso, era um buraco sem fundo, pagávamos um, ficávamos devendo a dois ou três. Era necessário parar de pegar mercadorias para revender e, por consequência, permanecer com as dívidas que já tínhamos.

Essa era a saída mais sensata, mesmo que prejudicasse tantos comerciantes. Era inevitável, eu e todos os trabalhadores ou contrabandistas, como éramos conhecidos, estávamos diante de um novo tempo naquela velha fronteira.

Devido ao novo sistema os problemas se agravaram, os produtos nacionais deixaram de ter preços atraentes, quase se equiparando aos preços do outro lado. Todas as fronteiras viviam na contramão da estabilidade financeira do país. As grandes redes nacionais foram as primeiras a deixar a pequena cidade de trinta mil habitantes, que curiosamente sustentava um comércio ativo para mais de cem mil pessoas.

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