A Queda
Aos poucos as lojas locais também foram fechando. A situação se agravou ainda mais com o corte da metade das frotas de trens do Uruguai. Apenas dois trens por semana continuavam vindo ao Departamento de Cerro Largo; o trem passageiro estava condenado a virar peça de museu. Também na República Oriental, o custo das passagens nas agências rodoviárias era altíssimo, devido à cotação em dólar do combustível. Colaborando em grandes proporções com a grande redução dos bagageiros, responsáveis pelas grandes compras das mercadorias brasileiras, de sorte que aqueles que de uma forma ou outra tinham lucro com as compras não estavam conseguindo pagar o transporte para vir à divisa e os turistas, por sua vez, sumiam.
Diante dessa situação, que se agravava dia após dia, aos contrabandistas só restava uma última migalha, que era ir ao encontro dos proprietários dos comércios uruguaios que não estavam dispostos a pagar os boletos caros, considerando que receber as mercadorias em suas regiões era bem mais lucrativo, sem contar que eliminavam o risco constante de serem abordados e saqueados pelos guardas da fronteira. Mas isso também teve seu fim, com a colaboração da aduana camineira, como era chamada a polícia de fronteira do Uruguai, que não dava trégua, marcando de cima os contrabandistas, assim intimidando qualquer tipo de contrabando.
Enfim, todos estavam no fim de um ciclo, não havia mais horizontes, restava apenas recuar e desistir. O que no princípio parecia eterno inexplicavelmente chegara ao fim, a fronteira do ouro tinha acabado. A pequena cidade era parte desse mundo, não existia lastro em nenhum lugar. A fuga, a busca por um novo espaço era a saída que todos viam naquele momento, não foi diferente para ninguém.
Em Fevereiro de 1984, a situação se agravou ainda mais. O gigante de ferro, que estava fazendo apenas duas viagens por semana, passaria a apenas uma. A gigantesca máquina de ferro que durante anos deu sustento a tanta gente, brasileiros e uruguaios, aos poucos ia desaparecendo. Muitos tentaram acompanhar as mudanças, porém ficou insustentável, quase ninguém chegava à estação de Rio Branco.
Foi também naquele fevereiro que vi pela última vez alguns companheiros de contrabando, aos poucos foram sumindo sem despedidas e logo depois muitos partiram para lugares diferentes em busca de um novo mundo, fugindo do preconceito que nos foi imposto por realizarmos um trabalho que para muitos era “sórdido”, o mesmo trabalho que tempos mais tarde, por ironia do destino, seria desejado por esses tantos; “era apenas um trabalho”.
Sem grandes chances de estabilidade, o transporte de passageiros ainda continuou até chegar a duas ou três viagens por mês. No dia 30 de dezembro de 1987, o governo uruguaio baixaria um decreto para extinguir definitivamente o transporte ferroviário no país.
Os tempos eram novos, mas muitos ainda não tinham o entendimento do que aconteceria com a fronteira. Os fazendeiros e os grandes plantadores viram a crise da fronteira como beneficio a seus negócios. Eles não entendiam que a crise chegaria a suas mansões, era uma questão de tempo. Todo aquele comércio gerava renda e a distribuía em todos os setores da sociedade, “todo povo paga um preço pela incompreensão”. As grandes empresas saíram de Jaguarão, a arrecadação do município desabou, os médicos abandonaram a cidade, não havia clientes o suficiente. Mais de dois mil empregos diretos acabaram, além dos indiretos, que era meu caso.
Aprendemos muito nos anos que ali ficamos. Embora a ponte fosse um mundo complicado e muitas vezes escuro, tínhamos consciência de que, sem o comércio movido pelo contrabando, as duas cidades fronteiriças estavam fadadas à quebradeira geral, que certamente traria prejuízo a todos, independentemente do nível social e condição financeira. A nós restavam somente as lembranças das torres pálidas e a marca em nossas vidas, no que se refere à conduta, uma mácula que somente uma dura luta, através dos anos vindouros, poderia apagar.
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