A Viagem
Naquela primeira viagem tudo era novo, até mesmo o que eu estava levando para ofertar nos armazéns. Comecei inovando com produtos mais supérfluos, cremes faciais, xampu, grampos para cabelos, perfumes e bijuterias, enfim, apostei na aparência na vaidade dos uruguaios. Embora soubesse que a castelhanada não era de emperiquitar-se, preferi arriscar nesse novo segmento de vendas. Alguém tinha que começar e nunca tive problema em ser o primeiro, até porque, mesmo sem nunca ter saído do percurso entre a ponte e a estação, conhecia bem os castelhanos, pois são iguais em qualquer parte. Adoravam comprar, na verdade tinham muito dinheiro, o que, é claro, contribuía muito em suas maneiras de consumo compulsivo. Até hoje nunca entendi como o comércio uruguaio sobrevivia: Eram péssimos quando necessitavam vender algo, em contrapartida, ótimos compradores.
Às 23h55 minutos, do dia 4 de julho, o velho trem carregado de vagões passageiros lentamente deu partida da estação de Rio Branco. Da janela de madeira do velho vagão, eu via as luzes da pequena fronteira desaparecendo aos poucos, dando lugar à escuridão na medida em que a robusta máquina entrava nos pampas uruguaios. A luz fraca dos vagões não incomodava as pessoas, que durante a viagem jogavam cartas e tomavam mate.
Os vagões estavam repletos de mercadorias, milhares de engradados de cachaça – as mais vendidas eram Velho Barreiro e Tremapé –, pacotes e pacotes de fumo, cujas marcas preferidas eram Renoberba e Índio. Os brasileiros que estavam no trem eram todos meus colegas e, como eu, estávamos indo para cidades maiores no centro do Uruguai, todos carregados de mercadorias. As vendas começavam antes mesmo de desembarcarmos do trem, muitos vendiam tudo antes de chegar a Vergara e só desembarcavam na cidade para pedir carona e retornar à cidade de Rio Branco.
Mas nem sempre vender tudo dentro do trem era vantajoso, o lucro era muito pequeno. As vendas eram para os próprios atravessadores uruguaios, que para revender colocavam o preço das mercadorias lá embaixo. Eu preferia vender nos comércios das cidades, pois mesmo que tivesse que caminhar muito o lucro era muito melhor.
Em silêncio, pedi a Deus que aquela primeira ida a Vergara nunca saísse da minha memória. Aquela madrugada foi emocionante, uma verdadeira aventura. A polícia uruguaia fez vistorias várias vezes no trem, os banheiros e os bancos eram esconderijos para nós: Assim como mágica todos desapareciam, até que os policiais desembarcassem dos vagões. Depois de muita correria de um vagão para o outro, para enganar os guardas, finalmente chegamos com as mercadorias intactas. Lembro que para economizar tínhamos que burlar o pagamento das passagens, e a maneira que fazíamos era engenhosa, a cada parada do trem nas pequenas estações, descíamos correndo do último vagão e subíamos no primeiro, despistando o boleteiro como era conhecido o homem das passagens.
Desembarcamos do trem por volta das três horas, o frio naquela madrugada era quase insuportável, fiquei junto aos demais vendedores à espera do amanhecer. A estação de Vergara era muito pequena, não havia grandes estruturas, quanto muito um café bem quente, que alguns ambulantes vendiam aos que chegavam à estação gelada da pequena cidade.
Ficávamos sentados entre os antigos galpões da estação, que eram seguros, já que os policiais dificilmente iam até lá. Os cuidados eram constantes, qualquer bobeira e seríamos presos com as mercadorias. Ser preso não era o pior – normalmente, com um ou dois dias éramos liberados, às vezes, horas depois, dependia do comandante –, porém as mercadorias eram irrecuperáveis, e perdê-las significava falência, já que todo o capital que tínhamos era transformado em produtos para venda. Ninguém tinha dinheiro guardado: Tudo era transformado em mercadoria, quanto mais dinheiro mais mercadorias, por consequência, mais lucro.
A claridade do dia vinha se apresentando, estava na hora do trabalho. Com muito cuidado pegávamos a estrada que ligava a estação férrea à zona urbana e no caminho visitávamos todos os armazéns, mostrando nossas mercadorias, despejando-as sobre os balcões de madeira com frentes envidraçadas. Havia muito respeito entre nosso grupo, a lei número um era não atrapalhar as vendas um do outro. Cordialmente cada um tinha seu tempo para mostrar o que estava vendendo; quando as mercadorias se repetiam, o cartel era estabelecido, o preço era o mesmo, preferíamos não vender a competir com algum companheiro. Por essa razão dificilmente comprávamos os mesmos produtos, a combinação acontecia antes mesmo de sair do Brasil. Todos sabiam o que seria levado, e isso era muito importante para evitar confusões futuras.
O sol demorava muito para aparecer, devido à enorme geada que costumava cair naquela época do ano nos pampas uruguaios. Mesmo com pouca visibilidade, adentrávamos os bairros da pequena cidade. Tudo era novidade, pelo menos para mim, que estava ali pela primeira vez, e só o que sabia era o que tinha ouvido falar. Por essa razão, trabalhei todo o tempo junto aos demais, que já possuíam experiência de sobra. Depois de algumas visitas ao comercio local, percebi que não fugiria da máxima “vassoura nova varre bem”. Minhas vendas foram excelentes, rapidamente consegui estabelecer uma boa relação com os proprietários dos armazéns, e isso foi fundamental para o sucesso. Por precaução, é claro, havia levado pouca mercadoria, que acabaram sendo vendidas com certa facilidade e o que era melhor, estava retornando cheio de pedidos devidos às novidades que havia levado, fazendo com que os comerciantes se enchessem de satisfação.
Naquele dia deixei Vergara sozinho, vim antes dos outros vendedores, pois era meu aniversário e queria chegar em casa pra comemorar meu aniversário, na minha família as coisas não estavam lá essas coisas, minha família não aceitava o meu trabalho que depois de um ano já não havia mais como escondê-lo, todos já sabiam e me recriminavam diariamente, embora eu ainda fosse menor, meu pai já não conseguia mais me controlar, e por fim já fazia vistas grossas para evitar brigas e desgastes.
Naquele 5 de julho, a vida me deu um grande presente, cheguei em minha casa e meus pais estavam me esperando, sem cobranças apenas com carinho, abraços e um bolo, ali percebi que ainda era amado e que sempre podemos recuperar o amor e a compreensão. Lembro bem do meu pai, minha mãe e minha irmã comemorando o meu aniversário, e lembro como se fosse hoje quando meu pai derramou uma lágrima e disse com uma voz mansa, nos acreditamos em você, talvez ali fosse o momento de parar tudo e começar uma nova vida, mas eu não parei...
Assim no outro dia segui a minha vida e voltei ao rotineiro mundo das viagens, não era mais um simples atravessador da ponte, em outras palavras estava metido de cabeça na vida do contrabando da fronteira
Logo depois de algumas viagens, inclusive à capital do Uruguai, a linda Montevidéu que tinha uma estação gigantesca ao contrário das pequenas cidades, já começava a ter um tratamento diferenciado por parte dos companheiros, afinal agora eu era um viajante, em outras palavras, o poder estava muito perto. Como em qualquer parte do mundo, ele era sinônimo de dinheiro e talvez por essa razão existisse uma peculiaridade especial em nosso mundo.
Ao começar a viajar, a vida agia tal um trampolim, como se chegasse à maioridade; todos o tratavam com respeito e admiração, os atacadistas ofereciam mundos e fundos, tentando atrair vendedores exclusivos. Havia o lado bom: Ser vendedor de um só atacadista significava mercadorias em abundância, o que para quem não tinha muito capital – meu caso naquele momento – era um bom negócio. Assim fechei parceria com o Atacado Paraná, um dos maiores da cidade, logo comecei a vender seus produtos em várias cidades do outro lado. Se antes eu já estava envolvido naquele mundo, agora, eu estava entrando completamente de vez dentro do contrabando, o que logo se mostraria cruel e irrecuperável.
Algum tempo depois os problemas começaram a aparecer. Tão logo fiquei visado pelas autoridades do Uruguai, comecei a perder minhas mercadorias, o que normalmente vinha seguido de prisões, as quais, muitas das vezes, perduravam dias. Por essas razões, logo mergulhei em dívidas que me levaram a outros atacadistas. Em pouco tempo, tirava de um para pagar outro. Foram muitas apreensões, prisões ate não ter mais saída, o inferno estava ali a minha frente, quem procura acha, e eu tinha encontrado o maior dos infernos.
Na vida familiar o relacionamento ia de mal a pior. No princípio, quando trabalhava nas proximidades da fronteira, consegui manter o equilíbrio, o domínio da situação, porém, com as viagens e as prisões no Uruguai, foi impossível evitar as brigas e desconfianças a cada retorno a minha casa. Isso fez com que as relações estremecessem, perdi a confiança e o amparo da minha família e sempre lembrava as palavras do meu pai: “Nós acreditamos em você”. Mas comecei a dar razão que aquela frase eu mesmo havia destruído.
Comecei a sentir saudades da escola e meu bairro. O meio onde eu vivia não tinha afinidade com a educação nem mesmo com laços familiares; estes valores não faziam parte do convívio das pessoas que tinham a vida ligada àquela velha escadaria, das reuniões dos fins de tarde, antes da partida para o embarque na velha locomotiva. O frenesi pela ganância era tanto, que ninguém se importava com moral ou regras da sociedade, o trabalho era ilícito, os valores aos poucos também passavam a ser ilícitos.
Não demorou muito tempo para que eu me sentisse arrependido de pegar aquele trem naquela madrugada. As primeiras viagens foram ótimas: dinheiro, poder e liberdade, mas também vieram acompanhados dos jogos, cigarros, dívidas, brigas. Notei aos poucos que o preço de tudo isso era muito alto, já não sabia se podia chamar de aventura ou liberdade, minha vida estava virada num caos. Por várias vezes perdi mercadorias consignadas e na tentativa de me recuperar, pegava mais em outros atacados, até chegar ao desespero, num enredo sem fim, noites mal-dormidas, rolando em casas de estranhos, cobrindo-me com cobertores sujos, nos bancos frios do trem, muitas vezes perdido em outro país.
Nessa época quase não visitava minha família, quando ia à casa de meus pais levava alguns presentes, tentando dessa forma amenizar a inconformidade deles, que já perdurava algum tempo, face à situação que eu vivia. Nada, porém, adiantava, logo desaparecia por vinte às vezes trinta dias, ora porque estava preso em algum departamento, por ter sido pego com contrabando, ora porque estava devendo para algum grande atacadista. Sabedor de que o mesmo iria procurar-me em casa, era confortável sumir até que tivesse dinheiro para o pagamento. Assim, ficava no Uruguai esperando a poeira baixar.
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