O Castigo
Quase sem destino – era assim que eu me sentia - as viagens havia me levado à beira do abismo e não via horizonte em meu futuro. Não estava mais estudando, tinha abandonado de vez os estudos. Na verdade em um ciclo de vida normal eu deveria estar cursando o primeiro ano do científico.
Eu não transmitia credibilidade alguma à minha família, os parentes mal me cumprimentavam quando passavam por mim. Só restava tentar manter o equilíbrio e aguardar que algo melhor acontecesse. Muitas pessoas falam que quando nos aproximamos do fim do túnel é que estamos prestes a encontrar a luz, depois da tempestade a bonança.
Foi exatamente o que aconteceu naqueles últimos dias. Ao ser procurado por um primo, fiquei surpreso com a proposta de um emprego para trabalhar no campo. Os parentes naqueles últimos anos só me viravam a cara. Embora nunca houvesse trabalhado na campanha, aceitei o convite na mesma hora. Talvez estivesse ali a oportunidade que eu precisava naquele momento conturbado. Um local afastado poderia ser um recomeço, um novo rumo para minha vida.
Estava passando por um momento de reflexão, queria encontrar uma maneira de me reaproximar da minha família, reencontrar o mundo que um dia havia deixado para trás. Naquele momento o mais importante era recuperar a confiança do meu pai e da minha mãe e nada melhor que um serviço dentro dos padrões convencionais, com carteira assinada, para mostrar que estava disposto a mudar.
Dessa forma embarquei no outro dia logo cedo, fui junto com outros trabalhadores em um caminhão que nos levaria para a costa da Lagoa Mirim, onde havia uma grande lavoura de arroz na propriedade de José Davi Pinto Lima, plantador tradicional da cidade. Não demorei a perceber que mais do que um novo trabalho, era um castigo; o preço era alto para me reintegrar à sociedade e seus aleivosos moralismos.
Logo descobri que naquele novo lugar, tudo era diferente, em nada se parecia com o que tinha feito nos últimos anos. Juntar esterco de vaca e cavalos não era tão emocionante quanto enfrentar as torres pálidas, porém aos poucos fui me adaptando à nova vida. Foram longos seis meses, durante esse tempo muito pouco falei, preferi o silêncio e a aceitação das regras daquela situação. As recordações dos amigos e das aventuras na fronteira eram constantes em meu pensamento e preenchiam minha cabeça, ajudando a não pensar besteiras.
Sou um sectário, daqueles que entendem que de tudo se pode tirar ensinamentos para que nos momentos certos possamos usá-los a nosso favor. Cada passagem na vida nos reserva conhecimentos, mesmo que estejamos em tal situação, totalmente contrariados. Assim foi o pequeno período na granja. A agricultura estava no auge, a plantação de arroz tomava conta das grandes fazendas do extremo sul, os financiamentos facilitados enriqueciam os plantadores, os mesmos que escravizavam a população mais pobre pagando-lhes míseros salários, que muitas vezes mal davam para pagar as cantinas situadas dentro das propriedades com os preços dos produtos superfaturados, devido à distância, deixando o trabalhador sem alternativa, tendo que comprar nessas cantinas, praticamente devolvendo o pagamento para os donos das granjas.
Seis meses foram suficientes para conhecer uma nova realidade. Trabalhei com pessoas que nunca tiveram a chance de idealizar algo maior, pessoas que herdaram vidas miseráveis, atreladas ao convívio rural, trabalhando de dia para comer à noite e vendo o patrão enriquecer ao longo dos anos. O dinheiro, o poder, a aquisição de terras, nada disso era importante para aquelas pessoas. A cupidez realmente não fazia parte daqueles homens, de mãos calejadas e rostos envelhecidos pela geada e pelo sol do plantio e colheita, ano após ano nas lavouras de arroz.
Mesmo que todos os deuses do universo cominassem minha permanência naquele lugar, seriam contrariados. Não me perdoaria conviver em situação tão submissa em uma conformidade caótica. Sabiamente, Deus nos criou com pensamentos diferentes uns dos outros; se todos pensassem como eu, talvez não tivéssemos arroz em nossas mesas.
Em um daqueles dias de trabalho exaustivo, cheguei à vila da granja, pronto para a janta que era servida sempre às seis da tarde, foi quando recebi a notícia que ficaríamos o final de semana só com bolachas e café, pois o dono da granja havia viajado e não teve tempo para fazer as compras para nossa comida, aquilo já havia acontecido outras vezes, mas pra mim era a última.
Juntei as poucas roupas que tinha levado, despedi-me de meu primo Gilmar, que trabalhava no almoxarifado, agradeci pela oportunidade que havia me dado e voltei para a cidade. Sai caminhando desbravando os vinte quilômetros que separavam a granja da cidade, caminhei muito, mas foi a caminhada mais prazerosa que já tive.
Na madrugada estava em minha casa, e as coisas estavam surpreendentemente calmas ao chegar, talvez porque todos dormiam, mas ao me levantar no outro dia notei que não havia cobranças, apenas um olhar de condenação ainda restava pairando sobre meus ombros. Uma espécie de trégua havia se instalado na família, um prêmio por eu aguentar tanto tempo num “cú de Judas”, sem dar preocupação ou causar problemas trabalhando num lugar execrado por todos.
Não pude fugir do retorno aos estudos, tive que optar pelo turno da noite, para possibilitar a busca de um emprego durante o dia. Trabalhar já era parte de mim, permanecer em casa sem ajudar nas despesas era impossível, eu tinha escolhido assim. Confesso que nunca fui cobrado para agir dessa maneira, porém, naquele dia em que busquei a liberdade, tinha a consciência de que era o certo, “nós colhemos o que plantamos”, comigo não seria diferente. Demais a mais, quanto maior fosse meu empenho, mostrando esforço para me amoldar aos valores importantes para minha família, menos difíceis seriam as coisas em casa.
Eu não queria dar chance para as antigas cobranças virem à tona. Minha família já cogitava minha ida para Rio Grande no próximo ano, e eu acreditava ser o melhor para o meu futuro. Durante o tempo que passei permaneci isolado na granja, para que minha situação melhorasse, juntei cada tostão para pagar minhas antigas dívidas nas lojas quase falidas, da beira da ponte; procurei cada comerciante e quitei os débitos. Por fim, as contas pagas, em casa a normalidade estava de volta.
A cidade era o maior problema, não tinha mais salvação, ainda assim, comecei a trabalhar em um trailer de lanches situado na esquina do cinema da cidade, o belo Cine Regente, onde devido à crise que já se mostrava latente, só passavam os filmes do Teixeirinha, Mazzaroppi e pornográficos. Durante cinco meses permaneci fazendo cachorro-quente dentro de uma gaiola de dois metros quadrados. Sentia-me um leão na jaula. Como tudo na fronteira estava se diluindo, com o cinema não foi diferente: Fechou para nunca mais abrir as portas, nem mais lanche se vendia, o caos no comércio era geral.
Dezembro de 1985 trazia consigo mudanças radicais em minha vida e, certamente, na vida daqueles que por algum motivo pisaram na fronteira naquele ano. Somos obra do passado e só descobrimos nossas falhas e fraquezas no futuro. Por esse motivo, as pessoas não perceberam que aquele ano era o começo do grande vórtice. A falência comercial, que rapidamente tornou-se irrecuperável, jogava a pequena cidade para uma nova maneira de viver.
A terra que quase foi dizimada pela febre amarela nos tempos do império, que se reergueu de várias calamidades causadas pelas cheias do rio impiedoso e imprevisível, enfrentaria agora a maior das dificuldades: A transformação da economia no comércio; os grandes empresários começavam a desabar como castelos de areia tombados pela maré.
Nunca me considerei privilegiado na arte de prever os fatos e muitas vezes tomei decisões errôneas na minha vida, mas naquele ano algo me dizia que, permanecendo nas lindeiras nações, estaria decisivamente norteando meu destino para pior situação, a que sempre repudiei: A mediocridade.
Os amigos, as aventuras a própria cidade, onde havia passado a maior parte de minha vida, estavam decisivamente prestes a ficar apenas em minhas lembranças. Não existia mais lugar para mim naquele mundo, pelo menos naquele momento da minha vida. Era necessário buscar novos conhecimentos, aprender com novas pessoas, enfim. Abraçar o novo tempo, que custara tanto a chegar ao pequeno bairro onde eu morava.
Um ano era o que faltava para meus dezessete anos, eu estava me tornando um homem. Embora já pensasse da mesma forma, há algum tempo, as pessoas me viam de maneira diferente, a cruz da responsabilidade começava a pesar mais. Agora respondia pelos meus atos, não era mais um menino, e isso às vezes me assustava. Permaneci cinco meses no treiller vendendo cachorro quente, um dia antes do carnaval de 1985 sai do meu emprego, já estava planejado aproveitar o carnaval e depois partir para Rio Grande.
Nesse carnaval inesquecível conheci uma grande paixão, a primeira mulher que amei, pelo menos é o que senti naquele tempo, uma das mulheres mais lindas que conheci, ela havia se separado a pouco tempo de um grande empresário da cidade, e por destinos nos encontramos em um dos bailes da cidade, o relacionamento beirou o escândalo, já que ela tinha 26 anos e eu ainda gozava dos meus 15 anos, como era previsto o grande amor não durou muito e ficou só nas lembranças que me acompanharam por meses sofridos. Ainda apaixonado e abandonado, um mês depois do carnaval, embarquei para o novo horizonte; o litoral passava a ser o meu novo mundo.
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