As Torres pálidas
Do cálice trincado sobre balcões nos subúrbios, ao banho de vinho tinto envelhecido, servido em cristais nas mesas de mármore. Do amargo do inferno real à doçura do céu ilusório.
Posso descrever desta maneira os extremos da minha existência; então volto ao passado e lembro os caminhos que percorri, dia a dia na longa estrada que nos conduz do primeiro choro ao nascer, rodeado de risos, ao descanso eterno da morte; às lágrimas, o incompreendido por todos.
Como todo ser normal, pequei e amei. Em meus pensamentos insanos matei, nos angelicais de plena acuidade, criei; implorei aos céus para falar com Deus em busca de respostas, quando buscava ser inimigo do sistema. Logo a vida mostrou-me que eu era parte dele e apenas estive ausente até enxergar a realidade.
Minha infância, riqueza maior da vida, responsável pelas lembranças mais belas da nossa existência, foi interrompida, despida de qualquer realidade temporal, surrupiada.
Talvez eu tenha contribuído para isso com uma constante excitação, querendo antecipar os fatos, zombando do destino, sempre procurando mudá-lo a qualquer preço, deixando de brincar no tempo em que deveria. Quando percebi, era tarde – como um estalo estava nos tempos mágicos da adolescência.
Dez anos. A minha idade se igualava a compreensão que tinha do mundo, distante dos valores entre o certo e o errado, da moral imposta pelos homens. Minha visão, devido a pouca experiência, estava a um palmo de minha face, mas meu coração trazia a esperança de que o futuro, por mais tempo que levasse, poderia me reservar algo especial, fantástico...
Desde cedo fiz do trabalho meu objetivo maior. Talvez por carregar a ânsia da independência, sempre acreditei que meus pensamentos, contrariando o que enxergava, estavam à frente do mundo em que eu vivia na pequena cidade da fronteira. Porém sabia perfeitamente que qualquer história, por mais simples que fosse, deveria ter um começo.
O mundo estava ali a minha frente me esperando de braços abertos, assim como quem da um primeiro passo para uma grande caminhada comecei minha trajetória.
A ousadia, herança maior que acompanhava meu espírito, era o que eu tinha de mais forte. Foi essa qualidade que me impulsionou na busca dos meus objetivos, permitindo que meus sentimentos colaborassem para me tirar tão cedo da banalidade da infância.
Meu bairro era muito simples, e a humildade era presente em todos que ali moravam. Lembro sempre do meu pai aos domingos quando se preparava para a pescaria com os amigos, fazendo daquele momento um dos acontecimentos mais importantes de sua vida.
-“Meu filho fica com a tua mãe, um dia quando você for maior poderá pescar com seus amigos.”
Ele repetia aquelas palavras como se aquilo fosse à conquista maior da minha vida, eu de certa forma também via como um grande acontecimento, movido pela fascinação que meu pai irradiava, ficava pensando no futuro, onde poderia um dia sair livremente para pescar com os meus amigos.
Meu pai era movido por um amor, o amor pelas pessoas, um dia disse a ele...
- Pai te dou duas moedas se você me disser onde está o amor? Ele respondeu prontamente, como era de costume.
- O pai te dá quatro moedas, se você me disser onde ele não está...
Meu pai, dentro da sua simplicidade, tinha o dom de guardar palavras mágicas para os momentos certos.
Como todo bairro, tínhamos nosso time do coração, e nos domingos era permitida a minha ida ao campo que ficava perto da minha casa, morávamos em uma casa popular, feita pela COHAB, uma companhia que construía casas com recursos do governo militar.
O nome do nosso time não era lá essas coisas: Florestal. Nunca soube ao certo o porquê do nome, mas tinha inúmeros seguidores, além de uma sede, muito freqüentada. As discussões de futebol se misturavam com as tacadas de sinuca, que eram o grande passatempo da época, tão grande que beirava o vício. Meus amigos e eu estávamos longe do risco do jogo do azar, estávamos mais preocupados em realizar o sonho de um dia disputar o Varzeano, como era chamado o campeonato da cidade – era uma glória sem igual jogar e defender as cores avermelhadas do Florestal. Em nosso bairro nem todos torciam pelo mesmo time, mas todos se conheciam, as casas eram praticamente coladas uma nas outras e quase todos da turma estudavam na mesma escola, que naquele tempo ainda era de madeira, e se cantava o Hino Nacional antes de entrar na sala de aula.
Quando não estávamos estudando, as brincadeiras costumeiramente iam noite adentro. O jogo de taco, a bolija, e o carrinho de lomba ou rolete eram brincadeiras que seguíamos religiosamente dia a dia, além de nunca faltarmos às fugidas até a sanga do João Dias, que ficava nas proximidades da Vila Germano. Muitos diziam que sua nascente ficava ao lado do Cemitério Municipal, “dos pobres” como era chamado, já que existia um cemitério só para ricos na cidade. Se a água era contaminada por defuntos ou não, nunca procurei saber, o banho e as brincadeiras eram mais importantes, difícil era se secar antes de chegar em casa. Molhado nem pensar, meu pai sempre foi um homem de muita disciplina, todo cuidado era pouco, uma surra nunca era bem vinda e naquele tempo apanhar era coisa normal, como diziam um bom corretivo nunca matou ninguém...
Nosso bairro, certamente, era o mais lindo do mundo, não havia lugar nenhum que reunisse tantos prazeres em um só local: namoro, aventura e amizade. Lembro bem da minha primeira namorada, às vezes fico forçando o pensamento para vê-la por alguns segundos da mesma forma que via em minha infância, nada era mais lindo, um beijo era um prazer impossível de se medir, tamanho a alegria que se sentia.
Minha irmã costumava me ajudar a escrever as cartas de amor para as garotas do bairro, lembro que uma vez uma das mães de uma menina foi em minha casa, furiosa e pedia explicações para meu pai, como se uma carta inocente de amor platônico fosse um pecado capital.
- Isso é uma vergonha, onde é que vamos parar... Dizia a mulher enfurecida.
- Calma! São crianças, vamos conversar com ele mais tarde, com certeza isso não irá se repetir dou minha palavra... As palavras do meu pai ecoavam no quarto onde eu aguardava o desfecho da situação, escondido e envergonhado.
Assim era o nosso bairro, nosso mundo encantado, onde tudo acontecia e as pequenas coisas tinham uma dimensão enorme, talvez até mesmo pela falta do que fazer. Naquela época as pessoas com quarenta anos já estavam velhas e se chamava de senhor e senhora, isso quando se era indagado, pois do contrário era proibido falar com os mais velhos, principalmente quando estavam reunidos.
- Não te mete nas conversas dos mais velhos...
Quantas vezes escutei essa frase, vinda da boca da minha mãe, quando ela se sentava com suas amigas, para tomar mate doce e comer pipoca, em frente à TV de válvulas General Eletric, assistindo os capítulos em Preto e Branco da novela Selva de Pedra.
Em determinado momento da minha vida, no entanto, notei um amadurecimento rápido dentro de mim, adorava todos e tudo o que vivia, mas, sem explicação, não me conformava mais com o que me rodeava, quis mais em todos os momentos; pra falar a verdade, não sei por que tinha esse desejo, sempre busquei algo maior. Durante algum tempo, acreditei que o que eu tinha estava de bom tamanho para minha idade e para minha compreensão da vida, mas aos poucos algo foi me impulsionando para vôos mais altos: o mundo foi se mostrando com mais realidade do que fantasia, conforme eu ia rompendo a barreira entre o meu bairro e a cidade.
Acompanhada da amplitude dos meus conhecimentos, as diferenças sociais começaram a ser sentidas em meu dia a dia e coisas que não eram importantes passavam a fazer falta ao meu pequeno mundo. A meu pai, embora fosse um bravo lutador, a vida não deu grandes oportunidades, e ele teve que se contentar com o pouco que lhe foi permitido conquistar, o que o obrigou a aceitar e conduzir como podia nossa família, sem grandes expectativas de mudanças.
Meu pai costumava sentar embaixo da parreira a contar da sua longa trajetória até chegar à cidade ainda jovem, criado na campanha (Rural) era o filho mais velho de oito irmãos, criados praticamente só pela mãe, pois seu pai os deixou e partiu praticamente fugido para o Uruguai, depois de perder as terras que tinha em uma mesa de carteado. Ele sempre contava da vida difícil que levou na infância, ainda menino viajava de carroça, mais de 50 km, para vender carvão vegetal em Jaguarão. Na época poucas casas tinham energia e o carvão era o combustível pra tudo, ele também contava coisas incríveis, como a antiga fábrica de fumo da cidade e os antigos barcos a vapor que faziam linhas fluviais de Jaguarão para outras cidades.
Depois da fuga do meu avô para o Uruguai, onde mais tarde foi comissário de polícia em São José, minha avó América e meus tios junto com o meu pai, tiveram que vir para cidade, e passaram a trabalhar nas casas de famílias abastadas praticamente pela comida e moradia, minha avó nunca mais se casou, naquela época uma mulher se casava apenas uma vez. Meu pai, junto com mais dois irmãos, acabou morando com a família do Dr. Henrique Kennor, empresário e político tradicional da cidade, ele permaneceu morando com a família até ir para o quartel.
Ainda servindo o Exército, conheceu a minha mãe, uma jovem linda, filha de um comerciante e começaram a suas vidas juntos, com a humildade peculiar de todos que migram de famílias pobres.
Em nossa casa sempre havia o necessário e condições dignas. Mesmo tendo que se desdobrar em dois serviços, meu pai fez de tudo para criar a mim, minha irmã, mais sua companheira de todas as horas, nossa mãe, que tinha o título do lar, não sei se por opção ou por que nunca havia se capacitado e, ainda assim, sempre ajudava meu pai com suas vendas de perfumes e bijuterias, tradição que herdou do meu avô comerciante.
Mesmo com tanto esforço, as condições eram parcas, tínhamos um sapato por ano e a roupa de festa às vezes cumpria seu papel por anos: minha mãe desmanchava a bainha cada vez que eu espichava o tamanho e novamente seguia sendo a roupa de domingo. Minha irmã, doze anos mais velha, já trabalhava, pois suas necessidades também haviam aumentado, e o estudo como era de costume, passava para segundo plano.
Eu estava crescendo e certo de que queria uma virada em minha vida, queria roupas novas, além de amenizar o sofrimento do meu pai, que a cada final de mês repartia o pouco que recebia para entregar às tantas dívidas que tinha, em virtude do sustento da nossa casa.
Lembro bem do meu pai sentado a mesa no final do mês, com a caneta e uma livreta, somando os gastos e cuidando para que tudo fosse pago, dívida por dívida. Nós, assim como muitas famílias comprávamos com livreta nos armazéns do bairro, durante muito tempo desempenhei a função de ir ao armazém fazer a compras para minha mãe, o que sempre me rendia umas balas como pagamento do trabalho,
- Paulinho vai no Seu João e busca as compras...
Este era o sinal que estava na hora da minha contribuição familiar, lá ia eu ao armazém enquanto ela ficava varrendo o pequeno pátio coberto com uma parreira que o cobria por inteiro.
Nunca saíram da minha memória os almoços aos sábados nas épocas das uvas, meu pai e minha avó, ambos com grandes bacias colhiam dezenas de cachos de uvas para deleito depois do almoço, ficávamos horas na mesa comendo uvas e escutando as histórias das pescarias e do colégio Alberto Ribas, escola onde o meu pai trabalhava.
Embora tivéssemos algumas dificuldades em nossa casa, naquele tempo as coisas eram mais fáceis, a pequena cidade da fronteira do Rio Grande do Sul esbanjava facilidades para o crescimento. Havia emprego para todos, lembro que eu ficava por horas em frente ao portão da minha casa vendo centenas de pessoas que se deslocavam na primeira hora da tarde para trabalharem, alguns iam de bicicleta e outros a pé, quase ninguém tinha carro naquela época, caminhando se chegava ao centro da cidade em uns trinta minutos. Mas o transporte mais usado ainda era a boa e velha bicicleta, Monareta, como alguns a chamavam.
Mas naquele portão de madeira, pensativo, comecei a sentir que meu jeito de ver a vida estava mudando, na medida em que ia crescendo queria me aventurar a passos mais largos, rompendo a barreira do meu bairro, lugar em que eu vivia, assim como as pessoas das bicicletas, aquelas que partem todos os dias, sempre na mesma hora...
Passei a observar o mundo, à minha maneira e como me convinha. Os boatos vinham de todas as partes: os meus amigos mais velhos da turma da rua comentavam que para quem quisesse dinheiro, bastava entender o novo mercado de vendas de produtos que abasteciam o país vizinho. A oportunidade estava lá, à disposição de todos, crescendo a cada dia, informal ou não, pois qualquer tipo de comércio entre os dois países era considerado contrabando. Isso tudo aguçava minha curiosidade, eu nunca havia saído do bairro, nem conhecia o tal país vizinho que tanto se falava.
Em meio a tudo que escutava só lembrava o que meu pai dizia sempre, contrabando é desonesto, mas nunca me lembrei de perguntar por quê...
Eu de certa forma, depois de atentamente escutar as explicações dos meus amigos de como era o trabalho na ponte, passei a discordar do pensamento do meu pai, mesmo sem nunca dizer. Eu acreditava que todo trabalho era digno, mesmo aquele que chamavam de contrabando, a pergunta que ficava em minha cabeça era uma só, como seria desonesto se as pessoas estavam trabalhando, vendendo coisas. Se vendiam era porque alguém queria comprar, quem era desonesto, quem vendia ou quem comprava?
E assim, com o olhar no amanhã, sem que minha família soubesse, passei a acordar todos os dias cedo para ir à escola, ou melhor, ao encontro dos meus amigos que já estavam trabalhando há tempos como sacoleiros nas proximidades das torres pálidas e imponentes, onde funcionavam as aduanas que separavam as duas pátrias. A querência dos maragatos e chimangos, e a Banda Oriental, dos brancos e colorados. Fronteira é a linha hipotética, resultante do acordo das nações sobre seus limites, que determina de que lado fica quem. “No entanto, cada fronteira tem suas peculiaridades, e cada homem de fronteira é diferente do outro”, dizia meu pai, de costumes platinos, oriundo das lindeiras nações.
Logo percebi que não eram apenas dois povos com vidas similares em alguns ritos e diferentes em outros, vi também que o mundo era um pouco diferente daquele que meu pai me contava.
Muitos meninos do subúrbio onde eu vivia já estavam às voltas com os pesos uruguaios há bastante tempo, e eu era mais um que estava entrando na disputa pelas valorosas moedas. Logo algumas semanas haviam passado e meus estudos passaram a serem secundários. A troca das aulas pelo novo trabalho foi inevitável; por essa razão, as mentiras em minha casa tornaram-se rotineiras.
Munido pela confiança que tinha dos meus pais consegui levar as mentiras por bastante tempo, e algumas vezes ia à escola onde também mentia, matando parentes e colocando enfermos em toda família.
Mas as minhas caminhadas, diferentes daquelas das pessoas que eu assistia no portão da minha casa, eram bem mais do que um simples acesso até o centro da cidade. Procurava olhar com outros olhos aquela passagem que me levava pela avenida dos cascalhos, como era conhecida a antiga estrada que ligava o vilarejo onde eu vivia reduto das famílias mais humildes, ao centro histórico e abastado da cidade.
Logo notei que discrepância era total, a desigualdade social beirava o exagero, uns com tanto e outros com tão pouco, e isso tudo num lugar conhecido como Cidade Heróica, título recebido pelas inúmeras batalhas em seu território. E pensar que naquela cidade todos já haviam sido iguais, que todos lutaram por uma mesma causa. E a minha família? Será que não havia lutado também, o que fez com que ela ficasse com a parte pobre? Isso eu jamais saberia, pois a vida é feita de ocasiões, oportunidades, e talvez a minha não tivesse tido, ou, assim como meu avo, tivessem perdido tudo em uma mesa de carpeta...
Era possível, mesmo depois de tanto tempo, avistar locais que foram palco das lutas demarcatórias. Muitas vezes pisei no mesmo chão onde guerreiros bravos defenderam nossa pátria. Homens conhecidos como Manoel Marques de Souza, e tantos lutadores desconhecidos que tomaram, à custa de muitas lutas, o acampamento militar fundado em 1801 pelos espanhóis, situado às margens do mágico Rio Jaguarão.
Nos tempos bárbaros da lança e espada, tudo era extremamente difícil. As mulheres lutavam protegendo suas propriedades, enquanto seus maridos pelejavam na costa do rio que demarcava a fronteira. Antes desses heróis e heroínas, tudo pertencia aos castelhanos, os mesmos que seguiam invadindo nossa cidade, porém agora para comprar tudo que pudessem.
Graças aos valentes guerreiros e à distribuição de terras feita pela coroa portuguesa, ajudando no povoamento da fronteira, os inimigos da época foram derrotados, e assim, se deu origem, em 1812, à freguesia do Divino Espírito Santo de Jaguarão. Vinte anos depois, em seis de julho de 1832, a pequena freguesia ganhava o status de vila, com denominação de Vila do Espírito Santo no Cerrito de Jaguarão.
Por fim, merecidamente, em 23 de novembro de 1855, ocorreu à elevação da vila, que já era bastante povoada, nascia à cidade de Jaguarão.
Junto aos meus passos, que seguiam em direção ao centro da cidade, eu ficava imaginando, naquele caminho, tantas vidas haviam passado, e agora quem estava deixando marcas no solo era eu.
As histórias se juntavam aos meus pensamentos e por momentos me perguntava se toda a situação de desigualdade em que vivia havia iniciado nas antigas distribuições de terras, no princípio de tudo, pois os afortunados da cidade em grande maioria eram descendentes de heróis da Guarda da Lagoa e do Cerrito. Mas como sempre preferia acreditar que a sorte não era pra todos.
Seguia meu caminho acompanhado pela poeira, hasteada pelo minuano, e minhas pisadas serelepes nas calçadas centenárias que rodeavam os prédios com suas sublimes fachadas, herdadas da monarquia. Sempre me maravilhei com as belas mansões construídas no período imperial. Muitos fidalgos da família real, nos tempos áureos, freqüentaram essas casas de majestosas portas, por meio das quais os afazendados senhores mediam seus poderes, exibindo-as belas e gigantescas. Muitas trazidas da Europa, outras eram esculpidas pelas mãos negras dos escravos.
Nossa região, devido à colonização açoriana, a escravidão foi muito usada a ponto de os afro-descendentes serem maioria entre os habitantes. Apesar dos negros contribuírem enormemente para o crescimento, era comum a discriminação, lembro que nas festas gaúchas havia o baile dos pretos, normalmente na sexta-feira. Algum tempo depois, foi criado o Clube Vinte Quatro de Agosto para a sociedade negra, que não podia entrar nos clubes tradicionais, Jaguarense e Harmonia, em virtude da cultura racista da cidade.
Nos bairros o racismo praticamente não existia, a pobreza não permitia tal diferença, a luta diária era pela sobrevivência. E pela harmonia de todas as questões raciais ficavam de lado.
Nas escolas municipais não se enfocava o assunto racial, mas os livros mais avançados relatavam que os negros haviam chegado a Jaguarão como escravos a partir da primeira metade do século XVIII. Foram trazidos para trabalhar na agricultura, nas estâncias, na lida da pecuária e, sobretudo a partir de 1780, na produção do charque. Os negros compunham cerca de 30% da população da província em 1780 e 40% do total em 1814. Atualmente, para se ter uma idéia, os negros perfazem cerca 60% da cidade de Pelotas. A produção das charqueadas era obtida pelo trabalho braçal escravo, em condições bastante desfavoráveis, em razão do clima penoso, da precariedade de infra-estrutura e exigências severas ditadas pelo próprio regime escravocrata.
A custa de tamanha brutalidade, em 1861, o charque contribuía com 37,7% do total do que o Rio Grande do Sul exportava, e os couros com 37,2% do total, ambos somando 74,9% da produção gaúcha para fora da província. A relação entre o trabalho forçado dos negros e o desenvolvimento das charqueadas era tal que na medida em que se aproximava a abolição também diminuía o número de charqueadas; Com todos os méritos da abolição, o processo foi muito mais político do que humano e social. Assim, os negros acabaram, devido à falta de oportunidades, qualificação e de assentamentos, ficando nas fazendas, servindo aos patrões e enriquecendo-os praticamente em um regime escravocrata disfarçado, foram-se a chibatadas, mas a humilhação perdurou por muitos anos.
Algumas vezes, em minhas idas para a Ponte, sentava-me para um açodado descanso, junto com os meus amigos do bairro, frente aos faraônicos abordos das casas antigas, que ressaltavam o piso das amplas salas dos alpendres revestidos de mármore com mochetas de bronze. Nestas, era costumeira a área de espera, algumas maiores que toda minha casa no subúrbio, elas serviam principalmente para que os senhores de terra recebessem seus empregados e os convidados menos afortunados em suas residências sem que necessitassem adentrar as dependências internas.
Sempre que colocava os pés sobre o portal de mármore, que branqueava o cabanal, sentia-me diminuído ante tamanha opulência. Podia, por alguns instantes, encarnar a modéstia dos peões, negros em sua maioria, os quais muitas das vezes, avistei na longa espera, confortando seu chapéu de feltro ao peito expressando uma condição de obediência. Mas nos dias quentes por curiosidade imatura, me aventurava a entrar nos grandes alpendres e fugir do sol cálido que, como milagre, perdia o esplendor, rendendo-se às robustas coberturas feitas com telhas francesas.
Permanecia ali por alguns instantes, no silêncio mórbido das sestas dos coronéis, estarrecido com a magnífica beleza que me envolvia. Sentia-me em uma fortaleza, mesmo fragilizado pelas minhas reais condições, lembrando-me quando meu pai me levava junto em algumas dessas casas, não como convidado, mas sim para fazer algum biscate para os proprietários.
Aquele ambiente de grandeza sempre despertava em meu subconsciente de forma cruel, uma arrogância contida. Não sei se de repulsa ou inveja, mas o que sentia na verdade era desejo de possuir tudo aquilo. Aqueles sentimentos colaboravam muito com minha vontade de começar a trabalhar desde cedo, mesmo sem capacidade de compreender os problemas que teria que enfrentar como conseqüência da independência, que viria cedo ou tarde. Todo aquele poder me envolvia me confundia, me dava cada vez mais forças para buscar um caminho que me desse uma direção diferente daquela que o meu pai tinha, se conformando em sua vida.
A dúvida me tomava a todo o momento, estaria eu errado? Em minha posição de repúdio a divisão desleal da maneira social em que vivia, ou talvez o certo fosse me colocar ao lado dos afortunados? Os que esnobavam os remediados. Quem sabe assim como algumas pessoas que conhecia, deveria conviver com as sobras, entre migalhas, fingindo fazer parte da corte em alguns casos falida e pomposa.
Tentei muitas vezes mentir para mim, quando fiz visitas hipócritas aos filhos dos coronéis sem fardas... Meninos que por razões desconhecidas acabavam indo ao subúrbio, em busca de amizades ou carinho, prazer talvez. Porém amarga era a verdade: não me sentia digno sequer de tocar os azulejos portugueses, que laminavam as paredes dos solares. Sempre que entrava em alguma dessas casas, um medo anormal me tomava. Temia venerar a desigualdade e não crer em Deus nem no milagre que se refere aos valores ensinados pelas instituições religiosas que ditam a moral da vida rumando para um único centro, o da crença. A compreensão do carma de cada indivíduo era o que explicava com maior clareza o que me açodava, mas isso não estava escrito no livro católico que minha mãe seguia.
Mas a vida tinha que continuar e assim, de pronto voltava à realidade e deixava as construções soberbas, que ostentavam o poder nas pedras e tijolos, sovados e queimados nas olarias entre chibatadas e atos covardes contra os negros nos tempos das barbáries. A beleza convivia ao lado da crueldade: lamentavelmente durante séculos muitos foram explorados para a satisfação e o bem-estar de uma minoria.
Com o passar do tempo percebi que minha essência estava enraizada na maioria, com os ultrajados, já que vivia ao lado deles, não sendo mais uma questão de pele e sim social. Essa situação de desigualdade foi fundamental para sustentar a sede de luta de tantas pessoas por um mundo justo. Essa também era minha luta. Mas não se resolveria apenas em uma tarde, mas ao longo da vida.
Naquele dia em que o destino me reservara uma ponta na história, iniciei minha caminhada junto com os outros meninos que me acompanhavam uma caminhada de tantas que faria em minha vida.
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