Décimo Terceiro Capítulo

O Militar

Um novo tempo estava diante de minha vida, não foi difícil a adaptação, muitos choravam no primeiro mês, quando o internato era obrigatório. Ficar longe da família, que para muitos era um martírio, para mim era tão normal que me dediquei a orientar e consolar os que não tinham essa separação por hábito. Para sorte de todos, porém, o mês passou e todos foram liberados para ficar dois dias junto aos familiares. Meu retorno naquela sexta-feira à tardinha foi triunfal.

Minha farda estava impecável, varei a noite engomando as calças e a gandola, minha apresentação tinha que ser a melhor para meu pai, ele era meu verdadeiro comandante, razão de tudo aquilo. Muitos, logo que saíram dos portões da caserna, trataram de tirar a farda. São as diferenças entre as famílias, estive em falta com a minha e ainda lutava para reconquistar todos. Tinha consciência da dívida com todos – devolver o orgulho do filho, que tanto eles tinham pedido.

Minha chegada à casa de meus pais foi inesquecível, não lembro outra vez ter sido recepcionado de maneira tão calorosa por minha família, porém tudo aquilo era compreensível. Levei horas para tirar a farda, era como se a roupa verde oliva fosse um troféu por tudo que havia passado antes. Confesso que não queria que aquele momento passasse, ver os olhos do meu pai soltarem fagulhas constantemente de orgulho era inexplicável. Até fotos naquele final de tarde tirei, a vida tinha me dado uma trégua, finalmente, os tempos bons estavam ali, na minha frente, era como se tudo começasse do zero, eu era o filho que todo pai queria ter.

Minha paixão por toda aquela situação levou-me ao comportamento exemplar na caserna. Quatro meses depois daquela tarde, eu estava sendo promovido a cabo do Exército. O mais curioso é que minha promoção foi anunciada pelo rádio da comunicação da tropa devido eu estar em um exercício em Saicã, campo de treinamento próximo à cidade de Rosário do Sul. Dessa forma retornaria mais uma vez em uma situação privilegiada.

Tão logo retornei para minha pequena cidade, alguns amigos que haviam ficado no quartel me esperavam com a nova farda, agora merecidamente com divisas costuradas. Era meu primeiro posto e com o mérito de ter ficado em primeiro lugar na classificação geral do curso. Por ironia do destino, quem me diplomou na formatura foi o mesmo sargento que havia me acompanhado no primeiro dia para receber meu fardamento. O comandante, ao me cumprimentar, respirou aliviado, não chegou a cometer a injustiça que esteve em suas mãos. A decisão sábia era a recompensa naquele dia, porém, na posição de oficial, nada falou – nem precisava, estava em seu olhar.

Naquela manhã, quando retornava para minha casa, gozando de uma dispensa, a qual era mais do que justa, fiz questão de passar na frente da Polícia Federal, que ficava a caminho do bairro onde eu residia. Não poupei a garbosidade: estufando o peito, desfilei com minhas novas insígnias, mostrando que todos têm o direito a uma oportunidade. Até hoje não sei se alguém de dentro do departamento percebeu minha passagem, mas aquele gesto tinha sido suficiente para lavar minha alma, estava me sentindo leve.


O grande ano de 1988 estava a meu favor. Permaneci no Exército com comportamento exemplar. Três meses depois recebi honra ao mérito no Oitavo Esquadrão de Cavalaria Mecanizada, porém ainda havia surpresas para vir. Naquele mesmo ano, o governo federal baixou um decreto diminuindo o contingente das unidades do Exército. A medida me atingiu como uma bomba: devido à minha modernidade, entrei na lista dos que seriam dispensados do serviço militar. Naquela semana entrei em parafuso, falei com todos meus superiores, argumentando meu ótimo comportamento, porém era inevitável minha saída. Tentei várias transferências, mas as outras unidades estavam com o mesmo dilema. Foi quando descobri que naquele mês estaria visitando a unidade da fronteira o Ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves. Embora fosse contra o estatuto um militar de tão pouca patente falar com o ministro, sabia que aquela era minha última chance. Logo tratei de falar com um cabo velho que geralmente declamava e fazia apresentações artísticas quando vinham à unidade visitas ilustres. Não deu outra: o cabo Guilherme, Trovador, como era conhecido, estava escalado para fazer apresentação artística da cultura gaúcha para o ilustre visitante. Ofereci-me de pronto para fazer o fundo musical dos seus poemas. Desde cedo arranhava o violão, o cabo velho tinha muita admiração por minha música e aceitou na mesma hora. Eu já tinha como me postar diante da autoridade maior, agora, só dependia da sorte para interpelar o poderoso general.


No sábado pela manhã, dia 22 de dezembro pra ser mais exato, o circo estava armado, e lá estávamos nós. Após uma formatura estressante, de uma hora e meia, rumamos os dois para o cassino dos oficiais, onde aconteceria o almoço e a apresentação da cultura Rio-Grandense. Logo após as autoridades estarem todas acomodadas, começamos a apresentação. Confesso que até hoje não lembro muito bem como foi toda aquela cena. O que lembro é que não enxergava nada na minha frente, naquele momento só pensava em meu pai e como iria dar a noticia de que estaria deixando o Exército. De repente, tudo tinha terminado, meu acorde final foi péssimo, tamanha minha desconcentração. Lembro que suava frio, tudo era muito rápido e, sob os olhares atentos de todos os oficiais, o cabo, quase se curvando, apresentou-se e apontou em minha direção, como um agradecimento ao acompanhamento. Restavam poucos segundos para viver ou morrer – era assim que eu via aquela situação. Foi quando o comandante maior do Brasil, detentor de uma estatura quase assustadora, pediu-me que cantasse o hino da cavalaria acompanhado pelo violão. Levei um susto e logo pensei: “Isto não estava no ensaio.” Ordem é ordem, ainda mais se tratando de um general que, por cima de tudo, poderia ajeitar minha vida, e assim lasquei a “Arma Ligeira”, como é conhecida a canção da cavalaria. Algum santo estava do meu lado naquele almoço, não tenho a menor dúvida disso, acredito que nunca toquei tanto, e o mais impressionante foi que depois daquele dia nunca mais repeti aquela canção outra vez. Confesso que o general não morreu de amores, porém um coronel de cavalaria que o acompanhava foi às lagrimas com minha interpretação.


Após o encerramento, o sentimental coronel perguntou há quantos anos eu estava na tropa. Era tudo de que eu precisava, foi a resposta mais rápida que dei em toda minha vida: “Estou há um ano, mas gostaria de ficar toda a vida.” Meu comandante avermelhou e não respirou por alguns instantes, mas eu e todos que estavam na sala ouvimos do general naquele momento o mais esperado por mim: “Você vai ficar o tempo que quiser, o Exército precisa de talentos. Não é Shualb?” Meu comandante engoliu seco e decretou a sentença: “Com certeza, general.”

No final de dezembro ainda cheguei a dar baixa, meu martírio começou a ser grande desse momento em diante. 1988 havia acabado e eu já estava nos primeiros dias do ano, que passavam cada vez mais rápido. Ao final de janeiro, pela primeira vez comecei a perder as esperanças. Após ligar várias vezes para a unidade onde havia servido, não encontrava resposta nenhuma. Minha família e amigos cobravam constantemente a promessa que eu mesmo havia feito a todos de retornar para o Exército. Essas cobranças, como de costume, eram feitas com ar de desconfiança. Tudo que havia feito até então não tinha sido suficiente para reconquistar a credibilidade daqueles que me cercavam. Como se não bastasse toda a minha aflição, descobri naquele mês que a mulher com quem me relacionava estava grávida de três meses. Essa bomba surgiu de maneira arrasadora em minha vida. Eu, apenas com dezoito anos, estava prestes a ser pai, resultado de um caso confuso com uma mulher de 29 anos! Quando descobri que ela estava grávida, comecei a preparar vários planos em minha cabeça e todos eles me levavam à saída de Jaguarão, tudo era muito a assustador, ser pai, eu nem sabia como isso seria, um medo me sufocava, como seu eu tivesse cometido um erro gigante, mais tarde vi que ser pai pode ser tudo, menos um erro.

Foi quando descobri que um grande amigo de infância, Eduardo, estava disposto a tentar a vida em Mato Grosso do Sul. Havia muitas terras férteis e muito serviço. Um Estado extremamente novo no centro do país. Naquele mesmo dia em que havia conversado com meu amigo, acertamos nossa viagem. Pretendíamos vender todos os nossos pertences e encarar a estrada no estilo mochileiro, na base da carona. Vendi bicicleta, roupas e alguns utensílios que havia adquirido nos últimos anos e estava pronto para partir em dez dias. Lembro que fiquei com poucas mudas de roupas e o violão, meu fiel companheiro.

Conseguimos arrecadar uma quantia em dinheiro bem substancial para que pudéssemos colocar em prática o nosso objetivo, a viagem. Comecei então a aguardar com ansiedade o dia da partida. Dois dias antes de pegarmos a estrada, estava sentado na frente da minha casa, tentando encontrar uma forma de dar a notícia de que deixaria a cidade para uma nova vida a meus pais, quando, como que por milagre, esbarrou próximo à calçada onde estava um jipe do Exército com dois ocupantes. Logo percebi que se tratava de algum assunto comigo. O sargento estava sentado no lugar do passageiro, tinha em suas mãos um envelope, que, ao me entregar, para minha surpresa maior, confirmava a minha reconvocação para o Exército. Confesso que fiquei perplexo. O ofício pedia a minha apresentação em 24 horas a uma unidade na capital do Estado.

Meu dilema, mais uma vez, era enorme, estava totalmente sem coragem de contar ao meu amigo que a tão esperada convocação, que pedi a Deus dias e dias, finalmente havia chegado, porém não tive escolha. O que seria extremamente ruim para meu amigo era a oportunidade que tanto esperava. Diante dessa situação, tratei de procurá-lo e, procurando eximir-me de qualquer culpa, dei a ele junto à notícia fatídica toda a quantia em dinheiro que havia juntado para a viajem. Fiquei apenas com o dinheiro da passagem para Porto Alegre e com a alegria dos meus pais e de toda a família.

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