Décimo Quarto Capítulo

A Capital Gaúcha
 
No começo de fevereiro de 1989, estava eu em Porto Alegre. Lembro que cheguei ainda de madrugada. Desci na rodoviária e vi a minha frente uma cidade enorme, tudo era gigantesco. As ruas, viadutos e o brilho das luzes, que eram em milhares. No ofício, eu tinha tudo explicado sobre onde me apresentaria. Caminhei até a Avenida Salgado Filho. Naquela madrugada a máxima de “quem tem boca vai a Roma” foi fundamental na minha chegada. Meia hora após ter saído da rodoviária, já estava na parada de ônibus que me levaria até o Bairro Serraria. Foram cinqüenta minutos andando sem que a cidade terminasse.

Eu estava completamente impressionado, já que, em minha pequena cidade, dez minutos eram suficientes para cortar a cidade de um lado ao outro. Já quase ao amanhecer, o cobrador, muito simpático, cujo rosto tenho ainda na memória, bateu-me no ombro dando o aviso que o décimo segundo esquadrão de cavalaria estaria na frente da próxima parada. Desembarquei após vários agradecimentos, que são típicos da criação do interior, e rumei para o portão das armas.

Lá estava o sargento, seu nome era Sadi, um militar calvo de estatura mediana que estava tentando conter um casal que, literalmente, se esbofeteava na frente da guarda. Impedido de me dar grandes atenções, pediu-me que aguardasse enquanto resolvia a pendenga. A unidade da qual estava prestes a fazer parte se situava ao lado de uma favela campeã em confusões.

O quartel era uma espécie de socorro a toda aquela gente, já que a polícia – mais tarde fiquei sabendo – não ousava entrar de jeito nenhum. Depois de resolvido o impasse, o sargento se dirigiu a mim e com ar muito simpático apresentou-se e me encaminhou para o alojamento. Naquela noite, ou dia, já que estava prestes a amanhecer, não consegui pregar o olho e logo cedo me levantei e me apresentei para meu novo comandante.

Tudo muito rápido e lá estava novamente fardado e incorporado no Exército Brasileiro. Permaneci o primeiro ano na capital do Estado sem retornar à pequena cidade Jaguarão. Eu estava transformando meus pensamentos, tudo havia mudado radicalmente, minha cabeça estava aberta para o mundo. Tantas mudanças que me marcaram, tudo fez com que aquele fosse um ano difícil de esquecer. E como não seria?

O Brasil passaria pela primeira eleição direta para presidente, depois de 29 anos, uma geração inteira experimentou o sabor de empunhar a bandeira de seu candidato, de gritar nos comícios nos centros de todas as cidades e ainda discutir política, sem problema algum, saboreando um chopinho nos bares. A grande revelação foi Fernando Collor, que veio de Alagoas prometendo caçar todos os marajás do país. Enquanto os adversários Lula e Leonel Brizola se agrediam sem parar e Enéias Carneiro, candidato do PRONA, fazia o Brasil se dobrar em risos com o bordão “meu nome e Enéias”.

O então desconhecido governador de Alagoas decolava, ancorado por uma campanha milionária, que o levou para o segundo turno, disputando a presidência com o candidato petista Luis Inácio Lula da Silva. Collor se sagrou vencedor, com 42,25%, cerca de trinta e cinco milhões de votos, contra trinta e um milhões do candidato petista. De dentro da caserna, eu acompanhava a história do país, que rapidamente se transformava em uma nova nação democrática, as mudanças eram gigantescas, mas muito ainda era preciso mudar.


Por outro lado minha vida se resumia nas saudades que sentia de todos, naquele tempo eu apenas me comunicava por meio de cartas ou ligando para um vizinho dos meus pais que haviam instalado o primeiro telefone do meu bairro. Engraçado, até hoje recordo bem aquele número, 261- 2310. Era por essa linha que eu matava a saudade e descobria o quanto era importante o convívio com minha família. Não demorei muito para fazer novos amigos e me aproximar de uma garota que morava nas proximidades do quartel. Um relacionamento que resultaria em uma das maiores jóias da minha vida.

Foi nessa época que, para minha surpresa, fui chamado ao meu alojamento para receber um sujeito que dizia ser meu irmão mais velho. Lembro que brinquei com o soldado que havia me chamado, alegando ser um possível trote, já que só tinha uma irmã, que certamente não deixaria Jaguarão para se deslocar à distante capital.

Quando cheguei à guarda, percebi que realmente alguém me esperava. Recebi o indivíduo em uma sala destinada às visitas. Perguntei do que se tratava. Ele reafirmou que era meu irmão. A revelação caiu como uma bomba. Tinha certeza de que meu pai não tinha outro filho, embora sua semelhança comigo fosse impressionante. Percebi que alguma coisa estava errada. Então comecei a escutar o rapaz cujo nome era Luiz Henrique e se intitulava meu irmão. Ofegante e sem parar um só segundo, conversou comigo acomodado em um banco na sala da guarda por mais de três horas. Quanto mais ele falava, narrando a minha verdadeira existência, mais eu me espantava, e o que no começo eu pensava ser impossível ia gradativamente de encontro à minha crença, provando-me a verdade.

As evidências iam deixando cada vez mais claro que suas histórias não só eram verdadeiras como também catastróficas. Foi quando percebi que de certa forma alguns acontecimentos de minha infância iam ao encontro do que estava ouvindo. As brigas com minha irmã mais velha quando ela afirmava não ter o meu sangue, para o desespero de meu pai, que pedia que calasse a boca. Tudo começava a se encaixar, porém, como defesa, criei uma barreira inconsciente que não me deixou ver em minha infância a verdade: eu era um filho adotivo.

Meus pais, que passavam de biológicos para adotivos a cada revelação que ele me fazia, foram perfeitos e cuidadosos na arte de ocultar a verdade do meu nascimento. Três horas, nada mais. Como uma avalanche, antes mesmo de perguntar sobre meu verdadeiro pai, recebi a notícia de que jamais o encontraria, pois havia morrido quando eu tinha apenas um ano de idade, vítima de um acidente ocasionado por um temporal no ano de 1970 que havia destruído boa parte da cidade de Santa Vitória do Palmar. Minha mãe biológica, apenas um ano depois da tragédia, acabou perdendo seu filho mais velho, que havia ficado como responsável da família. O irmão que não conheci havia morrido numa granja de arroz no Taim, de propriedade do senhor Lauro Ribeiro, em um acidente com um trator. Devido a todos esses fatores, narrou-me meu irmão, que suava sentado na minha frente, minha mãe, sem opção, acabou entregando todos os filhos a uma instituição. Foi quando percebi que além dele ainda restavam mais seis irmãos de que eu nunca ouvi sequer falar. Por essa razão, acabamos nos separando todos. Naquela tarde havia me procurado, pois eu era o último filho que eles haviam encontrado. Vinte e três anos! E estava na minha frente à verdade narrada em fatos e acontecimentos.


Eu não tinha mais certeza de minha verdadeira existência. Após todo o relato, meu irmão, que já havia passado por situação semelhante, deu-me o direito à escolha: continuava com a mentira de toda uma vida ou aceitava a verdade dos fatos e iria ao encontro de minha geradora que há tanto tempo me aguardava. Decidi então encontrar minha mãe.


Naquele mesmo dia pedi dispensa e viajei para Camaquã, não só para conhecer minha mãe biológica, mas também para juntar os fatos e encontrar minha verdadeira história. Chegamos a Camaquã ao anoitecer. Meu irmão não tinha contado a minha mãe que iria me procurar e fui ao seu encontro para realizar uma surpresa. No portão da casa do pequeno subúrbio da cidade, pensei várias vezes antes de entrar. Não sabia ao certo o que estava prestes a acontecer; era de fato salutar para minha vida, deveria eu realmente mexer com o que estava quieto? Porém era tarde demais e já estava na frente da casa, então parti para a porta e com três batidas permaneci aguardando que alguém me atendesse.
 

Eu não tinha noção alguma de como era minha mãe, traços, sorriso, voz, não tinha a idéia sequer de qual sentimento iria oferecer a ela, já que não possuía afeto algum por aquela mulher, que a qualquer momento abriria a porta em que eu havia batido. Meus pensamentos estavam certos: Ao ver aquela pessoa na minha frente, percebi que por mais que quisesse não havia sentimento, eu nunca soube de sua existência, ao contrario dela, que em prantos me tocava como alguém que não acredita no que vê. Mas ela sabia com certeza que ali estava seu filho, o tempo parecia não ter passado, eu era o mesmo menino que ela havia abandonado há 23 anos.


Assim, minha escolha foi entrar em uma nova vida, uma nova família, e sabia que daquele momento em diante colecionaria mais alegrias e tristezas. O sentimento e a intimidade viriam com o tempo, agora tinha duas famílias.

Depois do encontro, das histórias, de conhecer um por um dos novos parentes, retornei para Porto Alegre. Não fiz promessa de retornar, tampouco me cobraram tal atitude. Tudo era muito recente, ambos estávamos reservados, deixamos que a vida mantivesse seu curso normal, pois dessa forma seria melhor.

Cheguei a minha casa ainda atordoado com as recentes revelações, mas logo tudo voltou ao normal e minha vida continuou sem grandes mudanças. Na segunda feira eu estava novo em folha, começaria naquele dia a dar aulas de violão para uma associação comunitária na zona sul, nada poderia dar errado. Foi uma ótima oportunidade para meu entrosamento. O violão naquela época, como em tantas outras, foi fundamental para meu entrosamento na vida social da capital. Paralelamente ao serviço militar, ao qual sempre fui grato por ter-me dado a estrutura de que tanto necessitava em minha juventude, sempre tive a música ao meu lado. Alguns meses depois da minha chegada, estava participando de festivais e centros de tradições gaúchas.

Embora minha vida profissional continuasse de vento em popa, ano após ano dentro da caserna, minha vida pessoal, no entanto, se desdobrava em crises constantes no relacionamento. Acabei vivendo sempre na casa da minha sogra, dividindo meus problemas conjugais com toda a família. O tempo foi desgastando e rompendo qualquer possibilidade de dar continuidade à vida que eu vivia, estava sem história. Quase quatro anos havia passado, minha rotina era do quartel para a casa e vice-versa, salvo os festivais e bailes, aos quais sempre acabava indo sozinho, dadas às discussões infernais que existiam. Assim, cheguei a ponto de ver a separação como única alternativa coerente, mas a solidão, embora já não fosse tanta, ainda convivia ao meu lado. Tinha saudades da minha terra, da minha família e de tudo que havia deixado alguns anos antes.

Essa mesma solidão cooperou significativamente para que voltasse atrás em minha decisão e retomasse o relacionamento, que estava completamente desgastado. Por mais um curto tempo, foi quando descobri que nesse curto tempo, Ana Paula havia engravidado, mesmo sabendo da gravidez, me separei definitivamente, pois se tornou impossível manter um convívio, e percebi que daríamos muito mais certo como amigos do que como casados. Foi naquele dia que aprendi: “tudo que começa mal acaba mal”. Um ano antes havia conhecido minha primeira filha, Thuany, que não vi nascer e sobre cujo nome nem pude opinar. Sua mãe havia se casado, e só pude conhecê-la anos depois. Essa experiência me ajudou a fazer tudo diferente com a minha nova filha que estava a caminho. E assim acompanhei a Brenda sempre de perto, dando carinho e amor, mesmo estando separado da sua mãe. A Brenda nasceu e se apegou cada dia mais, mesmo não convivendo no mesmo lar.

Mais uma fase da minha vida havia passado. Agora estava mais maduro e começava a ver cada dia que o amor e a paixão eram quase sempre passageiros, assim como o meu amor pela farda que também estavam definitivamente desaparecendo. Nessa época formei um grupo musical e minhas atenções estavam totalmente voltadas para a banda. Foi quando decidi, contrariando a todos, desistir da carreira militar. Larguei o Exército, deixei muitos amigos, mas também tirei um peso, pois sabia que pela primeira vez em minha vida estava rumando para algo que eu realmente queria fazer. E o melhor: Sem precisar me preocupar com alguém ou dar explicações do meu destino, nunca foi segredo pra ninguém, muito menos pra mim, que minha ida para o Exército foi para satisfazer o meu pai e a minha família, e essas coisas nunca dão certo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

CLIC EM POSTAGENS MAIS ANTIGAS E LEIA OS CAPÍTULOS SEGUINTES