O Retorno
Em janeiro de 1986, estava de volta à fronteira. Minha casa, passado apenas um ano, não parecia à mesma: A pintura, os cantos, a mobília, até mesmo as pessoas que ali residiam tinham mudado. Ainda hoje não entendo se foi a casa e as pessoas ou eu quem havia mudado, o certo é que nada era igual, mas uma coisa estava clara, meu pai estava envelhecido, o preço da lição que quis me dar lhe custou muito. Existia em seu rosto uma mistura de culpa, arrependimento, impotência, enfim, dentre todos, ele era o que mais estava incomodado com toda aquela situação, parecia convencido de que tinha perdido o único filho homem e, por mais que se esforçasse, jamais o recuperaria.
Esse era o sentimento que por vários dias esteve no olhar do meu pai, porém não era o mesmo que eu carregava. Não tinha nenhum pouco de rancor ou desgosto com tudo que havia acontecido, eu encarava como uma situação normal e, como de costume, procurei tirar tudo de bom de cada momento que havia vivido naquele ano. Poucas semanas depois, tudo foi ficando normal, meu pai reencontrou a paz interior e seu olhar de culpa foi-se esvaindo, dando lugar ao olhar sereno e confiável de sempre. Sempre que olhava o meu pai, prometia pra mim mesmo que ele ainda haveria de se orgulhar de mim, esse era um compromisso que guardava só pra mim.
Dois meses depois estava novamente trabalhando, meu cunhado encostou-me em uma marcenaria, onde se recuperavam móveis antigos, e ali permaneci os sete meses mais monótonos de minha vida. Percebi que não era mais assunto entre minha família, à máxima de não mexer com o que está quieto perdurou dia a dia, e o ano de 1986 passou quase sem registro, salvo as festas e clubes que havia voltado a frequentar; na cidade a mania era a Dance Star, onde era a diversão principal dos finais de semana. Esse foi o ano dos namoros sem compromissos e das festas, como um bom trabalhador só nos finais de semana, é claro!
Para minha frustração silenciosa e interna, nesse ano poucas vezes cheguei perto da velha ponte ou das torres pálidas, como chamava as alfândegas imponentes dos dois países. Mas um novo ano estava chegando e seria o último antes de eu entrar no Exército, o grande sonho do meu pai. A firma onde tinha trabalhado nos últimos doze meses estava prestes a fechar, a recuperação de móveis não atraía mais as pessoas devido às grandes fabricas da região da serra, que vendiam móveis com ótimos preços, tornando impossível acompanhá-los e disputar o mercado.
Estava eu mais uma vez desempregado, obrigando-me a passar o último ano antes de entrar no Exército nos biscates e empreitadas que surgiam. Galpões de engenho eram as únicas alternativas, não havia muito que fazer, além de fornalhas para as caldeiras e coquiar sacas de arroz nos secadores. Fora esses serviços, a lavoura era a única opção. Como eu sabia que tudo era temporário, não refuguei quase nada naquele ano em que permaneci à espera do dia da entrevista para sentar praça, como dizia meu pai.
Até hoje me surpreendo comigo mesmo, quando lembro os dias que passei com extrema paciência. Naqueles momentos, pouco me conhecia, mas, mesmo não permitindo acomodar-me, mantive-me calmo, quase alienado ao mundo em meu redor. Às escondidas pelas granjas e cafundós, pouco pisava na cidade, vez por outra saía para ir a alguma festa. Nessas vezes percebia que a mácula dos anos passados ainda teimava em resistir. Dessa forma, lá voltava eu para o anonimato, na ânsia de um dia tudo acabar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário