O Pescador de Sonhos
Cheguei à cidade de Rio Grande, litoral do Rio Grande do Sul, no dia 19 de Fevereiro de 1985. Destino: A casa do meu tio, por parte da minha mãe, José, homem de grande sabedoria. Como muitos jaguarenses, havia nascido pobre no bairro Pindorama, um dos mais abandonados da cidade e cedo deixou a localidade, tratando de ganhar o mundo. Aproveitando o convite de uma de suas irmãs, bem-casada com um senhor pertencente a uma das famílias mais tradicionais da cidade portuária de Rio Grande, arrumou as malas e partiu ainda novo. Nunca mais retornou à cidade fronteiriça e não tinha dificuldade nenhuma em dizer que a pequena cidade de onde era não o atraia nem um pouco. Dizia não ter saudade da pobreza e da falta de oportunidade que lhe foram tão constantes nos primeiros tempos de sua existência.
Eu estava fadado aos mesmos desafios que principiaram sua vida: A falta de oportunidade e a busca por novos horizontes. Por certo, não os mesmos que ele havia encontrado trinta anos atrás, mas a mesma forma de começar a encontrar a tão sonhada virada para a vida de sucesso que tanto sonhava.
Eu estava mudando, o país também. Eram novos tempos, a ditadura militar havia se desfeito. Tamanha era a pressão popular, de vários setores da sociedade, o processo de abertura política tornou-se inevitável. Mesmo assim, os militares deixaram o governo por meio de uma eleição indireta, mesmo que concorressem somente dois civis (Paulo Maluf e Tancredo Neves). O povo tinha um novo começo, e minha situação não era diferente: Como sempre, procuramos ocultar os problemas e só enxergamos o que nos é satisfatório.
Dessa forma comecei a nova vida, cercado por pessoas de cujos costumes não comungava, mas que, até então, tinham ditado minha vida. Isso tudo dificultava cada vez mais minha adaptação à nova morada. Aliadas a essa situação de mudanças drásticas, estavam as brigas constantes entre meu tio e sua esposa. Ela não tardou a atribuir à minha chegada a avalanche de discórdias entre os dois. Certamente com minha presença meu tio, até então totalmente dedicado a ela, passou a me dar atenção mais intensa, destinando grande parte do seu tempo para ajudar a minha adaptação. E isso nunca deveria ser motivo para atribuir as discussões matrimoniais a minha presença na casa, até mesmo porque a casa vivia cheia, os dois davam aulas de inglês para muitos alunos, o trânsito nos corredores era constante, tão constante quanto às brigas entre os dois.
Mas logo cedo aprendi que os incomodados que se retirem, e eu estava incomodado com toda aquela situação. Tudo indo bem com estudos de inglês, mas a permanência naquela casa era impossível. Vivia pelos cantos tentando de todas as formas evitar o contato com os que ali residiam. Pouco falava com meus pais, a comunicação era muito difícil, pois meu pai não tinha telefone, tampouco os vizinhos. A carta ainda era o meio mais fácil, mas levava dias para chegar ao destino.
Foi quando decidi dar um novo rumo à minha complicada vida. Esse rumo, porém, não poderia ser o retorno a minha cidade, de volta pro meu aconchego, só na novela Roque Santeiro que fazia o maior sucesso na Globo, eu não queria ser o Roque Santeiro, pelo menos naquele momento, então decidi que sairia da casa do meu tio, que na época não fez muito para evitar minha saída. Realmente passei a ser um fardo muito pesado em sua vida – como escolher entre a mulher e um sobrinho que estava apenas começando a vida? Depois compreendi que sua escolha foi a mais certa, minha vida ainda daria muitas voltas, a dele com certeza também, pois era uma pessoa muito boa.
Naquela tarde peguei minhas trouxas e embarquei na barca que me levaria para São José do Norte. Quando cheguei ao mercado público, onde eram vendidos os boletos da embarcação, percebi que todos estavam abalados com as notícias dos jornais, que estampavam nas capas a morte do grande líder Tancredo de Almeida Neves, o homem que entrou para a história como aquele que não foi.
Era para ter sido o primeiro presidente civil depois de 20 anos de ditadura militar. Ele levaria o Brasil para a prometida Nova República, seria o articulador que governaria o país na sua fase de redemocratização. Não foi. Tancredo começou a morrer exatamente na véspera da posse. Internado às pressas no Hospital de Base de Brasília, morreu 38 dias depois, na noite de 21 de abril de 1985. Todos acompanhavam, com grande atenção, a agonia do político mineiro. Foi um dos maiores funerais da história nacional. Os noticiários calcularam na época que, entre São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João Del Rey, mais de dois milhões de pessoas viram passar o esquife.
Assim, assumiu a Presidência da República aquele que era para ter sido apenas o vice, o maranhense José Sarney, ex-presidente da Arena, o partido governista durante o regime militar. A articulação que elegera a dupla é tida ainda hoje como uma das mais complexas e bem-sucedidas na história política do país. Conta-se que Tancredo vinha silenciosamente trabalhando pela sua candidatura desde 1983.
No ano seguinte, com a derrota da emenda das Diretas Já, rejeitada pelo Congresso, ele foi granjeando simpatias. Convenceu Ulysses Guimarães a não concorrer no Colégio Eleitoral, conquistou o apoio de Antônio Carlos Magalhães e montou a Aliança Liberal, que possibilitou a união do PMDB com dissidentes do PDS (sucessor da Arena) e deu corpo ao PFL. Com Sarney de vice, derrotou Paulo Maluf na última eleição indireta do país. Tancredo vinha de uma longa carreira política, iniciada nos seus tenros 24 anos, em São João Del Rey. Elegeu-se vereador e, em seguida, presidente da Câmara Municipal. Foi deputado estadual, deputado federal, ministro da Justiça no segundo governo de Getúlio Vargas, primeiro-ministro durante o governo parlamentarista, senador por Minas Gerais e governador daquele Estado. Participou da fundação do MDB e do PP.
Senti que aquele dia ficaria marcado na história, todos choravam, e os abalos eram gerais. As pessoas estavam tontas, mas o Brasil continuaria, e minha vida também tinha que continuar, eu não tinha lá essa compreensão política para me abater a ponto de parar meu destino.
Assim, fiz a travessia, e cheguei a uma cidadezinha que vivia da plantação de cebola e da pesca, ao lado de Rio Grande. Devido à escassez de mão-de-obra, não tardou já estava empregado, comecei cortando e amarrando cebola nos galpões. Foi onde conheci muitos pescadores, que à espera da safra de camarão terminavam nas lavouras e nos galpões, preparando as réstias de cebola para abastecer o mercado nacional.
A época da pesca começava tão logo terminava a da cebola, e a debandada rumo às embarcações pesqueiras era geral. Da mesma forma que todos, eu, que já havia conquistado muitas amizades, estava pronto para me aventurar nas velhas embarcações de pesca e ali permaneci em busca do camarão, ganhando dinheiro sem ter onde gastar.
Estava de volta a um mundo parecido com o meu, pessoas simples, com histórias que se assemelhavam às minhas. Lembro bem das madrugadas, quando saíamos para o mar, mas o que mais me vem no pensamento, eram os momentos na colônia, onde aprendi a saborear a famosa jurupinga, bebida típica da região, passávamos noites falando da vida e descrevendo lugares nunca vistos nem por mim e nem por eles, lembro que mesmo no inverno não se sentia frio, talvez por causa do calor humano que era formidável. Os pescadores mais velhos se sentavam a contar histórias e os mais jovens ouviam atentamente, os contos dos velhos marujos, que conheciam o mar como poucos, sempre que vejo o mar lembro daqueles senhores de barbas cheias e expressões definidas nas faces.
Porém, depois de muitas aventuras, histórias e muito trabalho pesado, tudo chegava ao fim. Embora tivesse permanecido pouco tempo naquela colônia de pessoas puras e sinceras, quase sem notar tinha estabelecido uma relação de carinho e extrema amizade.
Quando não estava embarcado, participava de várias atividades da pequena sociedade do vilarejo. Até no time do vilarejo eu acabei jogando, tudo isso fez com que a partida, mesmo necessária, fosse amarga. Sabia naquele dia que jamais esqueceria aquelas pessoas, mas tinha também a frustrante certeza que depois da minha partida, nunca mais voltaria aquele vilarejo, que serviu não só de refugio e de reflexões, mas também de grandes ensinamentos, adquiridos no contato diário com aquelas pessoas humildes e humanas de Capivaras do Sul.
Não restava outra saída, era hora de partir, a saudade da minha família, que naquele ano aprendi a dar tanto valor, estava cada vez maior. Embora nem eu mesmo acreditasse, estava mais perto do que nunca de voltar para Jaguarão. Quase um ano foi suficiente para me mostrar que nem sempre o que se diz é definitivo, a começar pela minha vinda para Rio Grande, aonde vim para ficar em um lugar e acabei em outro, assim estava disposto a retornar para a fronteira. Pode parecer pouco, mas um ano muda muito as pessoas e a vida. Com essa esperança retornei à pequena cidade de onde havia saído com lágrimas no rosto, naquela tarde abaixo de chuva.
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